A VIDA QUE VENCE
ÍNDICE
O autor destes estudos, o Sr.
Watchman Nee (Nee To-sheng) de Foochow, verdadeiro escravo de Jesus Cristo, fez
com que ficássemos obrigados a ele quando, numa visita à Europa em 1938 e 1939,
expôs com tanta lucidez, no seu ministério a muitos grupos de jovens obreiros e
outros, os princípios fundamentais da vida e conduta cristãs.
Várias das palestras, que
constituem a matéria de que este livro foi compilado, foram já coligidas
independentemente e dadas à publicação, e têm sido meio de bênção para
muitos. Outras, que cobrem um terreno semelhante, porém mais vasto, existem
desde há muito sob a forma de manuscrito ou notas. Foi com a convicção de que a
mensagem destas palestras merece, atualmente, uma circulação mais vasta, que me
encarreguei de editar a matéria disponível, para tornar maior este livro.
Sem ter contato pessoal ou
comunicação com o autor, tive eu próprio de tomar a responsabilidade plena do
trabalho da edição. Isto envolveu a necessidade de reunir matéria proveniente
de diversas fontes para formar seqüência lógica dentro da estrutura de duas
séries originais de estudos. Devido à ampla variedade desta matéria, incluindo
relatos verbais de palestras faladas em Inglês, notas particulares de leituras
da Bíblia, e conversações pessoais e algumas traduções do Chinês, houve por
força tomar certas liberdades no que diz respeito ao arranjo literário - não,
evidentemente, no que se refere à doutrina - que tomaram a mão do editor mais
evidente do que eu o desejaria. Todavia, o privilégio de um contato pessoal
íntimo com o Sr. Nee durante 1938 e o auxílio e as críticas de outros que desfrutaram
do seu ministério, ou que trabalharam com ele e o conheceram melhor do que eu
combinaram-se, em alguns lugares em que era necessário fazer-se interpretação,
para assegurar a fidelidade ao seu pensamento.
Trabalhar neste livro foi uma
experiência de análise e Investigação. Sai agora com a oração para que a sua
forte ênfase sobre a grandeza de Cristo e a suficiência do Seu trabalho possa
ser usada por Deus, para levar os Seus filhos a uma posição de maior
eficiência espiritual, e assim de valor crescente para Ele.
Bangalore, Índia — 1957.
ANGUS KINNEAR.
1
O
sangue de Cristo
O que é a vida cristã normal?
Fazemos bem em considerar esta questão logo de início. O objetivo destes estudos
é mostrar que essa vida é algo muito diferente da vida do cristão comum. De
fato, a análise da Palavra de Deus escrita — do Sermão da Montanha, por exemplo
— deve levar-nos a perguntar se tal vida já foi vivida sobre a terra, a não
ser, unicamente, pelo próprio Filho de Deus. Mas, nesta edição, encontramos
imediatamente a resposta à nossa pergunta.
O apóstolo Paulo nos dá a sua
própria definição da vida cristã em Gálatas 2.20. É "não mais eu, mas
Cristo". E não declara aqui alguma coisa especial ou singular — um alto
nível de cristianismo. Creio que aqui apresenta o plano normal de Deus, para o
cristão, que pode ser resumido nas seguintes palavras: Vivo não mais eu, mas
Cristo vive a Sua vida em mim.
Deus nos revela claramente,
na Sua Palavra, que somente há uma resposta para cada necessidade humana — Seu
Filho, Jesus Cristo. Em toda a Sua ação a nosso respeito, Deus usa o critério
de nos tirar do caminho, pondo Cristo, o Substituto, em nosso lugar. O
Filho de Deus morreu em nosso lugar, para obter o nosso perdão; Ele vive em vez
de nós, para alcançar o nosso livramento. Podemos falar, pois, de duas
substituições — uma Substituição na Cruz, que assegura o nosso perdão, e uma
Substituição interior que assegura a nossa vitória.. Ajudar-nos-á grandemente,
e evitará muita confusão, conservar constantemente perante nós este fato: Deus
responderá a todos os nossos problemas de uma só forma: mostrando-nos mais do
Seu Filho.
Nosso problema duplo: os pecados e o pecado
Tomaremos agora, como ponto
de partida para o nosso estudo da vida cristã normal, aquela grande exposição
da mesma que encontramos nos primeiros oito capítulos da Epístola aos Romanos e
encararemos o assunto de um ponto de vista experimental e prático. Será de
grande auxílio notar, em primeiro lugar, uma divisão natural desta seção de
Romanos em duas, e notar certas diferenças evidentes no conteúdo das duas
partes.
Os primeiros oito capítulos
de Romanos constituem em si mesmos, uma unidade completa. Os quatro capítulos
e meio, de 1.1 a 5.11, formam a primeira metade desta unidade, e os três
capítulos e meio, de 5.12 a 8.39, a segunda metade. Uma leitura cuidadosa
revelar-nos-á que o conteúdo das duas metades não é o mesmo. Por exemplo, no
argumento da primeira seção encontramos em proeminência a palavra plural
"pecados". Na segunda seção, contudo, esta ênfase é modificada,
porque, enquanto a palavra "pecados" ocorre apenas uma vez, a palavra
singular "pecado" é usada repetida vezes, e constitui o assunto
básico e principal das considerações. Por que assim?
Porque, na primeira seção,
considera-se a questão dos pecados que eu tenho cometido diante de Deus, que
são muitos e que podem ser enumerados, enquanto que, na segunda, trata-se do
pecado como princípio que opera em mim. Sejam quais forem os pecados que eu
cometo, é sempre o princípio do pecado que me leva a cometê-los. Preciso
de perdão para os meus pecados, mas preciso também de ser libertado do poder do
pecado. Os primeiros tocam a minha consciência, o último a minha vida. Posso
receber perdão para todos os meus pecados, mas, por causa do meu pecado, não tenho,
mesmo assim, paz interior permanente.
Quando a luz de Deus brilha,
pela primeira vez, no meu coração, clamo por perdão, porque compreendo que
cometi pecados diante dEle; mas, após ter recebido o perdão dos pecados, faço
uma nova descoberta, ou seja, a descoberta do pecado, e compreendo que não só
cometi pecados diante de Deus, mas também que existe algo de errado dentro de
mim. Descubro que tenho a natureza do pecador. Existe dentro de mim uma
inclinação para pecar, um poder interior que leva ao pecado. Quando aquele
poder anda solto, eu cometo pecados. Posso procurar e receber o perdão, depois,
porém, peco outra vez. E, assim, a vida continua num círculo vicioso de pecar
e ser perdoado e depois pecar outra vez. Aprecio o fato bendito do perdão de Deus,
mas eu desejo algo mais do que isso: preciso de livramento. Preciso de perdão
para o que tenho feito, mas preciso também de ser libertado daquilo que sou.
O duplo remédio
de Deus: o Sangue e a Cruz
Assim, nos primeiros oito
capítulos de Romanos, apresentam-se dois aspectos da salvação: em primeiro
lugar, o perdão dos nossos pecados e, em segundo lugar, a nossa libertação do
pecado. Agora, ao considerar este fato, devemos notar outra distinção.
Na primeira parte de Romanos,
1 a 8, encontramos duas referências ao Sangue do Senhor Jesus, em 3.25 e 5.9.
Na segunda, é introduzida uma nova idéia, em 6.6, onde lemos que fomos
"crucificados" com Cristo. O argumento da primeira parte
centraliza-se em torno daquele aspecto da obra do Senhor Jesus, que é representado
pelo "Sangue" derramado para nossa justificação, pela "remissão
dos pecados". Esta terminologia não é, contudo, levada para a segunda
seção, cujo argumento gira em tomo do aspecto da Sua obra representado pela
"Cruz", o que quer dizer, pela nossa união com Cristo na Sua morte,
sepultamento e ressurreição. Esta distinção tem muito valor. Veremos que o
Sangue soluciona o problema daquilo que nós fizemos, enquanto a Cruz soluciona
o problema daquilo que nós somos. O Sangue purifica os nossos pecados, enquanto
que a Cruz atinge a raiz da nossa capacidade de pecar. O último aspecto será
alvo das nossas considerações nos capítulos que se seguem.
O problema dos nossos pecados
Comecemos, pois, com o
precioso Sangue do Senhor.
O Sangue do Senhor Jesus Cristo
é de grande valor para nós, porque trata dos nossos pecados e nos justifica a
vista de Deus, conforme se declara nas seguintes passagens:
"Todos pecaram” (Romanos 3.23).
"Mas Deus prova
o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo
nós ainda pecadores. Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo seu
sangue, seremos por ele salvos da ira" (Rm 5. 8-9).
"Sendo
justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em
Cristo Jesus; a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a
fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado
impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da
sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador
daquele que tem fé em Jesus." (Rm 3.24-26).
Teremos ocasião, num estágio
mais adiantado do nosso estudo, de olhar mais particularmente para a natureza
real da Queda e para o processo da recuperação. Nesta altura, queremos apenas
lembrar de que o pecado, quando entrou, expressou-se em forma de desobediência
a Deus (Rm 5.19). Ora, devemos considerar que, quando isto acontece, o que
imediatamente se lhe segue é o sentimento de culpa.
O pecado entra na forma de
desobediência, para criar, em primeiro lugar, separação entre Deus e o homem,
do que resulta ser este afastado de Deus. Deus já não pode ter comunhão com
ele, por agora existir algo que a impede, e que, através de toda a Escritura, é
conhecido como "pecado". Desta forma, é Deus que, primeiramente,
diz: "Todos... estão debaixo do pecado" (Rm 3.9). Em segundo
lugar, o pecado, que daí em diante constitui barreira à comunhão do homem com
Deus, comunica-lhe um sentimento de culpa — de afastamento e separação de Deus.
Agora, é o próprio homem que, mediante
a sua consciência despertada, diz: "Pequei" (Lc 15.18). E
ainda não é tudo, porque o pecado oferece também a Satanás uma possibilidade de acusação diante de Deus, enquanto o nosso sentimento de
culpa lhe dá ocasião para nos acusar nos nossos corações; assim, pois, em
terceiro lugar, é o "acusador dos irmãos" (Ap 12.10), que agora diz:
"Tu pecaste".
Portanto, para nos remir, e
nos fazer regressar ao propósito de Deus, o Senhor Jesus teve que agir em
relação a estas três questões: do pecado, da culpa, e da acusação de Satanás
contra nós. Primeiramente, teve que ser resolvida a questão dos nossos
pecados, e isso foi feito pelo precioso Sangue de Cristo. Depois, tem que ser
resolvido o assunto da nossa culpa e é somente quando se nos; mostra o valor
daquele Sangue que a nossa consciência culpada encontra descanso. E,
finalmente, o ataque do inimigo tem que ser encarado e as suas acusações
respondidas. As Escrituras mostram como o Sangue de Cristo opera eficazmente
nestes três aspectos, em relação a Deus, em relação ao homem, e em relação a
Satanás.
Temos, portanto, necessidade
de nos apropriarmos destes valores do Sangue, se quisermos de fato prosseguir.
É absolutamente essencial. Devemos ter conhecimento básico do fato da morte do
Senhor Jesus, como nosso Substituto, sobre a Cruz, e uma clara compreensão da
eficácia do Seu sangue, em relação aos nossos pecados, porque, sem isto, não
poderemos dizer que iniciamos a marcha. Olharemos então estes três aspectos
mais de perto.
O Sangue é
primariamente para Deus
O Sangue é para expiação e,
em primeiro lugar, relaciona-se com a nossa posição diante de Deus. Precisamos
de perdão dos nossos pecados cometidos para que não caiamos sob julgamento; e
eles nos são perdoados, não porque Deus não os leva a sério, mas porque Ele vê
o Sangue. O Sangue é, pois, primariamente, não para nós, mas para Deus. Se eu
quero entender o valor do Sangue, devo aceitar a avaliação que Deus dele faz e,
se eu não conhecer o valor que Deus dá ao Sangue, nunca saberei qual é o seu
valor para mim. É só na medida em que me é dado conhecer, pelo Seu Espírito
Santo, a estimativa que Deus faz do Sangue, que eu próprio aprendo o seu valor,
e vejo quão precioso o Sangue realmente é para mim. Todavia, o seu primeiro
aspecto é para Deus. Através do Velho e do Novo Testamento, a palavra
"sangue" é usada em conexão com a idéia da expiação, segundo creio,
mais de cem vezes, e sempre, e em toda a Escritura algo que diz respeito a
Deus.
No calendário do Velho
Testamento há um dia que tem grande significação quanto aos nossos pecados, o
Dia da Expiação. Nada explica esta questão dos pecados tão claramente como a
descrição daquele dia. Em Levítico 16 lemos que, no Dia da Expiação, o Sangue
era tomado da oferta pelo pecado e trazido ao Lugar Santíssimo e ali espargiu
sete vezes diante do Senhor. Devemos compreender isto muito bem. Naquele dia,
a oferta pelo pecado era oferecida publicamente no pátio do Tabernáculo. Tudo
estava ali à vista de todos, e por todos podia ser observado. Mas o Senhor
ordenou que nenhum homem entrasse no Tabernáculo, a não ser o sumo sacerdote.
Era somente ele que tomava o sangue, e, entrando no Lugar Santíssimo, o
espargia ali para fazer a expiação perante o Senhor. Por quê? Porque o sumo
sacerdote era um tipo do Senhor Jesus na Sua obra redentora (Hebreus 9.11-12),
e, assim, em figura, era o único que fazia este trabalho. Ninguém, exceto ele,
podia mesmo aproximar-se da entrada. Além disso, havia relacionado com a sua
entrada ali, um único ato: a apresentação do sangue a Deus como algo que Ele
aceitara algo em que Ele Se satisfaria. Era uma transação entre o sumo
sacerdote e Deus, no Santuário, fora da vista dos homens que se beneficiaram
dela. O Senhor exigia-o. O Sangue é, pois, em primeiro lugar, para Ele.
Mas, anteriormente,
encontramos descrito em Êxodo 12.13, o derramamento do sangue do cordeiro
pascal, no Egito, para redenção de Israel. Este é, creio um dos melhores
tipos, no Velho Testamento, da nossa redenção. O sangue foi posto na verga e
nas ombreiras das portas, enquanto que a carne do cordeiro era comida no
interior da casa; e Deus disse: "Vendo Eu sangue passarei por cima de
vós". Eis outra ilustração de o sangue não se destinar a ser apresentado
ao homem, e, sim, a Deus, pois que o sangue era posto nas vergas e nas
ombreiras das portas, de modo que os que se encontravam em festa dentro das
casas não pudessem vê-lo.
Deus está
satisfeito
É a santidade de Deus, a
justiça de Deus, que exige que uma vida sem pecado seja dada em favor do homem.
Há vida no Sangue, e aquele Sangue tem que ser derramado em favor de mim,
pelos meus pecados. Deus requer que o Sangue seja apresentado com o fim de
satisfazer a Sua própria justiça, e é Ele que diz: "Vendo eu sangue
passarei por cima de vós". O Sangue de Cristo satisfaz Deus inteiramente.
Desejo agora dizer uma
palavra a respeito disto aos meus irmãos mais novos no Senhor, porque é neste
caso que muitas vezes caímos em dificuldade. Em nossa condição de descrentes,
podemos não ter sido absolutamente molestados pela nossa consciência, até que
a Palavra de Deus começou a nos despertar. A nossa consciência estava morta, e
aqueles que têm consciência morta certamente não têm qualquer préstimo para
Deus. Mas, mais tarde, quando nós cremos, a nossa consciência pode se tomar
extremamente sensível, e isto pode vir a ser real problema para nós. O
sentimento de pecado e de culpa pode se tornar tão grande, tão terrível, que
quase nos paralisa porque nos faz perder de vista a verdadeira eficácia do
Sangue. Parece-nos que os nossos pecados são tão reais, e algumas vezes algum
pecado em particular pode atribular-nos tantas vezes, que chegamos ao ponto de
imaginá-los maiores do que o Sangue de Cristo.
Ora, nosso mal reside em
estarmos procurando sentir o seu valor e estimar, subjetivamente, o que o
Sangue é para nós. Não podemos fazê-lo. O Sangue não opera desta forma.
Destina-se, primeiramente, a ser visto por Deus. Então, temos que aceitar a
avaliação que Deus faz dele. Ao fazê-lo, acharemos a nossa própria estimativa.
Se, ao invés disto, procuramos avaliá-lo, por meio do que sentimos, não
alcançaremos nada, e permanecemos em trevas. Pelo contrário, é. questão de fé
na Palavra de Deus. Temos que crer que o Sangue é precioso para Deus porque
Ele assim o diz (I Pe 1.18-19). Se Deus pode aceitar o Sangue, como
pagamento pelos nossos pecados e como preço da nossa redenção, então podemos
ter certeza de que o débito foi pago. Se Deus está satisfeito com o Sangue,
logo, deve ser aceitável o Sangue. A nossa estimativa dele é somente de acordo
com a Sua avaliação — nem mais nem. menos. Não pode, evidentemente, ser mais,
mas não deve ser menos. Lembremo-nos de que Ele é santo e justo, e que o Deus
santo e justo tem o direito de dizer que o Sangue é aceitável aos Seus olhos, e
que O satisfez inteiramente.
O acesso do crente ao sangue
O Sangue satisfaz a Deus, e
deve nos satisfazer da mesma forma. Tem, portanto, um segundo valor, em
relação ao homem, na purificação da sua consciência. Quando examinamos a
Epístola aos Hebreus, vemos que o Sangue faz isto. Devemos ter "os
corações purificados da má consciência" (Hebreus 10.22).
Isto é da máxima importância.
Note cuidadosamente o que diz a Escritura. O escritor não se limita a dizer que
o Sangue do Senhor Jesus purifica os nossos corações, sem nada mais declarar.
Erramos se relacionarmos inteiramente, desta forma, o coração com o Sangue.
Revelaremos má compreensão da esfera em que o Sangue opera se orarmos:
"Senhor, purifica o meu coração do pecado, pelo Teu Sangue". O
coração, diz Deus, é "enganoso, mais do que todas as coisas e
perverso" (Jeremias 17. 9) e Ele tem que fazer algo mais fundamental do
que purificá-lo: tem que nos dar um coração novo.
Não lavamos nem passamos a
ferro roupas que vamos jogar fora. Como logo veremos, a "carne" é
demasiadamente má para ser purificada; tem que ser crucificada. A obra de Deus
em nós tem que ser algo inteiramente novo. "Dar-vos-ei coração novo, e
porei dentro em vós espírito novo" (Ezequiel 36.26).
Não encontramos a declaração
de que o Sangue purifica os nossos corações. O seu trabalho não é subjetivo
assim, mas inteiramente objetivo diante de Deus. É verdade que o trabalho
purificador do Sangue aparece aqui, em Hebreus 10, com relação ao coração, mas
é, na realidade, com relação à consciência. "Tendo o coração purificado
da má consciência".
Qual então o significado disto?
Significa que havia algo se
interpondo entre mim e Deus, e que, como resultado disto, eu tinha má
consciência sempre que procurava aproximar-me dEle, que constantemente me
lembrava da barreira que permanecia entre mim e Ele. Mas, agora, pela operação
do precioso Sangue, algo foi realizado diante de Deus que removeu aquela
barreira. Deus revelou-me este fato através da Sua Palavra. Quando creio nisto
e o aceito, a minha consciência fica imediatamente limpa, o meu sentimento de
culpa é removido, e já não tenho má consciência diante de Deus.
Cada um de nós sabe quão
precioso é ter consciência sem ofensa nas nossas relações com Deus. Um coração
de fé, e uma consciência limpa de toda e qualquer acusação, ambos são
igualmente essenciais para nós, desde que sejam interdependentes. Logo que
verificamos que a nossa consciência está sem descanso, a nossa fé desvanece e
imediatamente achamos que não podemos encarar Deus. Portanto, a fim de
prosseguirmos com Deus, temos que conhecer o valor real atual do Sangue. O
Sangue nunca perderá a sua eficácia como fundamento do nosso acesso a Deus, se
realmente dele dependermos. Quando entrarmos no Lugar Santíssimo, em que base,
que não seja o Sangue, nos atreveremos a fazê-lo?
Quero, porém, perguntar a mim
mesmo: esta realmente procurando o caminho para a presença de Deus através do
Sangue, ou por algum outro meio? O que quero dizer quando afirmo "pelo
Sangue?” Quero dizer apenas que reconheço os meus pecados, que confesso que
necessito da purificação e da expiação e que venho a Deus confiante na obra
consumada do Senhor Jesus. Aproximo-me de Deus exclusivamente através dos Seus
merecimentos, e jamais na base do meu comportamento; nunca, por exemplo, na
base de ter sido hoje especialmente amável, ou paciente, ou de ter feito hoje
algo especial para o Senhor. É só aproximar dEle. A tentação de muitos de nós, quando procuramos nos aproximar de Deus,
é pensar que, porque Deus já operou em nós - porque já atuou para nos trazer mais
perto de Si, e porque nos ensinou lições mais profundas da Cruz - então, já nos
deu novos padrões tais que, sem alcançar os mesmos, não haverá mais consciência
tranqüila diante dEle. Nunca, porém, se deve basear a consciência tranqüila
naquilo que conseguimos ou alcançamos; somente se deve basear a consciência
tranqüila naquilo que conseguimos ou alcançamos; somente se pode basear na obra
do Senhor Jesus, no derramamento do Seu Sangue.
Talvez esteja errado; sinto,
porém, com muita convicção, que há entre nós quem pense desta maneira:
"Hoje fui um pouco mais cuidadoso; hoje procedi um pouco melhor; esta
manhã, li a Palavra de Deus com mais fervor, de modo que hoje posso orar
melhor". Ou, então: "Hoje tive algumas pequenas dificuldades com a
família; comecei o dia sentindo-me muito melancólico e deprimido; não me sinto
muito animado agora; parece que algo não está bem; não posso, portanto, me
aproximar de Deus".
Afinal
de contas, qual é a base em que você se aproxima de Deus? Aproxima-se dEle na
base incerta dos seus sentimentos, o sentimento de que hoje se realizou algo
para Deus? Ou baseia-se a sua aproximação de Deus em algo muito mais seguro, ou
seja, no Sangue derrama do no fato de que Deus olha para aquele Sangue e Se dá
por satisfeito? É lógico que se pudesse conceber que o Sangue sofresse qualquer
modificação, a base da sua aproximação de Deus seria menos digna de confiança.
O Sangue, porém, nunca mudou nem mudará jamais. A sua aproximação de Deus é, portanto,
sempre com ousadia; e essa ousadia lhe pertence pelo Sangue, e nunca pelas
suas aquisições pessoais. Qualquer que seja a medida do que se conseguiu
alcançar hoje, ontem e no dia anterior, logo que se faça um movimento
consciente para o Lugar Santíssimo, deve-se permanecer no único funda mento
seguro — o Sangue derramado. Quer tenha tico um dia bom ou mal, quer tenha
pecado conscientemente ou não, a base da sua aproximação é sempre a mesma – o sangue
de Cristo. Esse é o fundamento sobre o qual se pode entrar, e não há outro.
Vê-se que, como em muitas
outras fases da nossa experiência cristã, nosso acesso a Deus tem dois
aspectos: um inicial e outro progressivo. O primeiro se nos apresenta em
Efésios dois, e o ultimo em Hebreus 10. Inicialmente, a nossa posição perante
Deus foi garantida pelo Sangue, porque fomos "aproximados pelo Sangue de
Cristo" (Efésios 2.13). Mas, daí em diante, a base do nosso contínuo acesso
ainda é o Sangue, porque o Apóstolo nos exorta: "Tendo, pois, intrepidez
para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus...
aproximemo-nos..." (Hb 10.19-22). De inicio chegamos perto pelo Sangue, e,
para continuar nesta nova relação, eu venho a Deus a todo momento pelo Sangue.
Não se trata, portanto, de haver uma base para a minha salvação, e outra para
manter minha comunhão. Alguém dirá: "Isso é muito simples; é o ABC do
Evangelho". Sim, mas a tragédia, com muitos de nós, é que nos desviamos do ABC.
Chegamos a pensar que fazemos tais progressos que podemos dispensar o Sangue,
jamais, porém, poderíamos fazê-lo. Não, a minha aproximação de Deus é pelo
Sangue, e é desta mesma forma que, a todo momento, eu venho perante Ele. E
assim será até o fim; sempre e unicamente pelo Sangue.
Isto não significa, de forma
alguma, que devemos viver de modo descuidado — estudaremos daqui a pouco outro
aspecto da morte de Cristo em que se considera este assunto. O que importa aqui
é nos contentarmos com o Sangue, que é real e suficiente.
Podemos ser fracos, no
entanto o olhar para as nossas fraquezas nunca nos tornará fortes. Procurar
sentir nossa maldade, e nos arrepender por isso, não nos auxiliará a sermos
mais santos. Não há auxílio nisso sem haver da nossa parte confiança em nos
aproximarmos de Deus mediante o Sangue, dizendo: "Senhor, não entendo totalmente
qual seja o valor do Sangue, mas sei que a Ti satisfez, e que deve me bastar
como motivo único do meu apelo a Ti. Percebo agora que não se trata de eu ter
progredido e alcançado algo. Só venho perante Ti na base do precioso
Sangue". Então fica realmente limpa a nossa consciência diante de Deus.
Nenhuma consciência poderia jamais ficar tranqüila, independentemente do
Sangue. É o Sangue que nos dá intrepidez.
"Não mais teriam
consciência"de pecados": estas palavras de Hebreus 10.2 têm significado
transcendente. Somos purificados de todo o pecado e podemos realmente fazer
nossas as palavras de Paulo: "Bem-aventurado o homem a quem o Senhor
jamais imputará pecado" (Romanos 4.8).
Vencendo o Acusador
Em face do que temos dito,
podemos agora voltar-nos para encarar o Inimigo, porque há um novo aspecto do
Sangue, que diz respeito a Satanás. Atualmente, é o de acusador dos irmãos
(Apocalipse 12.10), e nosso Senhor o enfrenta como tal no Seu ministério
especial de Sumo Sacerdote, "pelo seu próprio sangue" (Hebreus 9.12).
Como é, então, que o Sangue opera contra Satanás? Por este meio: colocando Deus
ao lado do homem. A Queda introduziu algo no homem que deu a Satanás livre
acesso a ele, de forma que Deus foi compelido a Se retirar. Agora, o homem está
fora do Jardim — destituído da glória de Deus (Romanos 3.23) — porque
interiormente está separado de Deus. Por causa do que o homem fez, existe nele
algo que, até que seja removido, impede Deus moralmente de o defender. Mas o
Sangue remove aquela j barreira e restitui o homem a Deus e Deus ao homem. O
homem agora está certo com Deus, e com Deus ao seu lado pode encarar Satanás
sem temor.
Lembre-se do seguinte
versículo: "O sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado" (I João 1.7). Não é "todo
pecado, no seu sentido geral, é cada pecado, um por um. O que significa
isto? É algo maravilhoso! Deus está na luz, e na medida em que andamos na luz
com Ele, tudo fica exposto e patente a ela, de modo que Deus pode ver tudo — e
mesmo nestas condições o Sangue pode nos purificar de todo o pecado. Que purificação!
Não se trata de eu não ter profundo conhecimento de mim mesmo, ou de Deus não
me conhecer perfeitamente. Não significa que eu procuro esconder alguma coisa,
ou que Deus não faz caso disso. Não, significa que Ele está na Luz, e que eu também estou na Luz, e que
mesmo ali o Sangue precioso me purifica de todo o pecado. O Sangue pode
fazê-lo plenamente.
Alguns de nós às vezes somos
tão oprimidos pela própria fraqueza que somos tentados a pensar que há pecados
quase imperdoáveis. Recordemos de novo a palavra: "O sangue de Jesus, seu
Filho nos purifica de todo pecado". Pecados grandes, pecados pequenos,
pecados que podem ser muito negros e outros que não parecem tão negros assim,
pecados que penso possam ser perdoados, e pecados que parecem imperdoáveis,
sim, todos os pecados, conscientes ou inconscientes, recordados ou
esquecidos, se incluem naquelas palavras: "Todo pecado". "O
Sangue de Jesus Cristo, Seu Filho, nos purifica de todo pecado", e isto
porque o Sangue satisfaz inteiramente a Deus.
Desde que Deus, que vê todos
os nossos pecados na luz, pode nos perdoar por causa do Sangue, em que base
pode Satanás nos acusar? Talvez Satanás nos acuse perante Deus, no entanto:
"Se Deus é por nós, quem será contra nós? " (Romanos 8.31). Deus lhe
mostra o Sangue do Seu querido Filho. É a resposta suficiente contra a qual
Satanás não tem apelação. "Quem intentará acusação contra os eleitos de
Deus? É Deus que os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu,
ou antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus, e também intercede
por nós' (Romanos 8.33-34).
Mais uma vez, portanto, vê-se
que precisamos reconhecer a absoluta suficiência do Sangue precioso.
"Quando, porém, veio Cristo como sumo sacerdote... pelo seu próprio
sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna
redenção" (Hebreus 9.11-12). Foi Redentor uma só vez, e já há quase dois
mil anos que está sendo Sumo Sacerdote e Advogado. Ali permanece, na presença
de Deus, como "propiciação pelos nossos pecados" (I João ?). Notem-se
as palavras de Hebreus 9.24: "Muito mais o Sangue de
Cristo...". Evidencia a suficiência do Seu ministério. É suficiente
para Deus.
Qual é a nossa atitude para com Satanás?
Isto é importante, porque ele
não somente nos acusa perante Deus, mas também na nossa própria consciência.
"Você pecou, e continua pecando. Você é fraco, e não há mais nada que Deus
possa fazer por você". É este o seu aumento. E a nossa tentação é olhar
para dentro, procurando, para nos defender, algo em nós mesmos, em nosso
sentimento ou comportamento que nos dê algum motivo para crer estar errado
Satanás. Outras vezes, a tendência é admitirmos a nossa grande fraqueza e,
caindo no outro extremo, nos entregamos à depressão e ao desespero. Assim
sendo, a acusação é uma das maiores e mais eficazes armas de Satanás. Aponta
para os nossos pecados e procura acusar-nos perante Deus; se aceitarmos as suas
acusações, afundar-nos-emos imediatamente.
Ora, a razão por que
aceitamos tão rapidamente as suas acusações é que ainda esperamos ter alguma
justiça própria. É falsa a base da nossa esperança. Satanás conseguiu
fazer-nos olhar na direção errada, atingindo assim o seu objetivo de nos deixar
incapacitados. Se, porém, tivéssemos aprendido a não confiarmos na carne, não
nos espantaríamos quando surgisse o pecado, posto que pecar é a natureza
intrínseca da carne. É por falta de reconhecermos qual seja nossa verdadeira
natureza com sua debilidade que nós ainda confiamos em nós mesmos, de modo
que tropeçamos sob as acusações de Satanás quando ele as levanta contra nós.
Deus tem poder para
solucionar o problema dos nossos pecados; nada, porém, pode fazer por um homem
que se submete à acusação, porque tal homem já não está confiando no Sangue. O
Sangue fala em seu favor, prefere, porém, escutar Satanás. Cristo é o nosso
Advogado, mas nós, os acusados, nos colocamos do lado do acusador. Ainda não
reconhecemos que nada merecemos, senão a morte; que, como logo passaremos a
ver, só merecemos ser crucificados! Não temos reconhecido que é somente Deus
que pode responder ao acusador e que já o fez por meio do Sangue precioso.
Nossa salvação está em
olharmos firmemente para o Senhor Jesus, reconhecendo que o Sangue do Cordeiro
já solucionou toda a situação criada pelos nossos pecados.
É este o fundamento seguro em
que nos firmamos. Nunca devemos procurar responder a Satanás, tendo por base
a nossa boa conduta, e sim, sempre com o Sangue. Sim, estamos repletos de
pecado mas, graças a Deus que o Sangue nos purifica de todo pecado! Deus
contempla o Sangue, por meio do qual o Seu Filho enfrenta a acusação, e
Satanás perde toda a sua possibilidade de atacar. Semente a nossa fé no Sangue
precioso, e a nossa recusa de sairmos daquela posição, podem silenciar as suas
acusações e afugentá-lo (Romanos 8.33-34); e assim será sempre até ao fim
(Apocalipse 12.11). Que emancipação seria a nossa, se víssemos mais do valor,
aos olhos de Deus, do precioso Sangue do Seu querido Filho!
2
A
cruz de Cristo
Vimos que Romanos 1 a 8 se
divide em duas seções, a primeira das quais nos mostra que o Sangue trata daquilo
que fizemos, enquanto na segunda aprendemos que a Cruz trata daquilo que somos.
Precisamos do Sangue para o perdão, e precisamos da Cruz para a libertação. Já
tratamos daquele, e agora consideraremos esta, depois de primeiramente levantar
algumas características desta passagem que contribuem para demonstrar a
diferença, em conteúdo e assunto, entre as duas metades.
Algumas distinções
mais
Mencionam-se dois aspectos da
ressurreição nas duas seções, nos capítulos 4 e 6. Em Romanos 4.25, a ressurreição
do Senhor Jesus Cristo é mencionada, em relação à nossa justificação:
"Jesus nosso Senhor... foi entregue por causa das nossas transgressões, e
ressuscitou por causa da nossa justificação". Trata-se aqui da nossa
posição perante Deus. Em Romanos 6.4, no entanto, fala-se da ressurreição
comunicando-nos nova vida a fim de termos um andar santo: "Para que, como
Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos
nós em novidade de vida". Apresenta-se aqui a questão do nosso
comportamento, da nossa conduta.
Semelhantemente, fala-se de
paz em ambas as seções, nos capítulos 5 e 8. Romanos 5 fala da paz com Deus,
que é resultado da justificação pela fé no Seu Sangue: "Justificados,
pois, mediante a fé, tenhamos paz com Deus, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo"
(5.1). Isto significa que, agora, perdoados os meus pecados, Deus não será mais
motivo de temor e perturbação para mim. Eu, que era inimigo de Deus, fui
"reconciliado com Deus mediante a morte do Seu Filho" (5.10). Logo
descubro, no entanto, que sou eu quem causarei dificuldades a mim mesmo,
havendo algo em meu íntimo que me perturba, levando-me a pecar. Há paz com
Deus, sem, porém, haver paz comigo mesmo. Trava-se guerra civil em meu próprio
coração. Esta condição está bem descrita em Romanos 7, onde vemos a carne e o
espírito em conflito mortal dentro do homem. Em seguida, o argumento conduz ao
capítulo 8, à paz interior do andar no Espírito. "Porque o pendor da carne
dá para a morte", por ser "inimizade contra Deus"; o pendor do
Espírito, porém, dá "para a vida e paz" (Romanos 8.6-7).
Percebemos, ao prestar mais
atenção, que a primeira seção trata de modo geral da questão da justificação
(ver por exemplo, Romanos 3.24-26; 4.5,25), enquanto a segunda tem, como
expoente principal, a questão da santificação (ver Romanos 6.19-22). Conhecendo
a preciosa verdade da justificação pela fé, ainda é só metade da história que
conhecemos. Foi solucionado o problema da nossa posição diante de Deus. À
medida que prosseguimos, Deus tem algo mais para nos oferecer: a solução do problema
da nossa conduta, tema que o desenrolar do pensamento destes capítulos se
propõe a salientar. Em cada caso, p segundo passo deriva do primeiro, e se conhecemos
apenas o primeiro, então ainda seguimos uma vida cristã subnormal. Como podemos
então viver uma vida cristã normal? Como entramos nela? Bem, como é evidente,
em primeiro lugar devemos receber o perdão dos pecados, devemos ser
justificados, devemos ter paz com Deus. Estes são os fundamentos
verdadeiramente estabelecidos mediante nosso primeiro ato de fé em Cristo,
sendo portanto evidente que devemos avançar para algo mais.
Veremos, pois, que o Sangue
trata objetivamente com os nossos pecados. O Senhor Jesus levou-os, por
nós, como nosso Substituto, sobre a Cruz, e obteve, para nós, desse modo, o
perdão, a justificação e a reconciliação. Devemos, porém, dar agora um passo a
mais no plano de Deus para compreender como Ele trata corr. o princípio do
pecado em nós. O Sangue pode lavar e tirar os meus pecados, mas não pode
remover o meu "velho-homem". É necessária a Cruz para me crucificar.
O Sangue trata dos pecados, mas a Cruz trata do pecador? Dificilmente
se encontra a palavra "pecador" nos primeiros quatro capítulos de
Romanos. E isto porque ali não se salienta necessariamente o próprio pecador,
falando-se mais dos pecados que ele comete. A palavra "pecador"
aparece com destaque só no capítulo 5, e é importante notar-se como é que o
pecador é apresentado neste trecho. É considerado pecador porque nasceu
pecador, e não por ter cometido pecados. Esta distinção é importante. É
verdade que muitos obreiros do Evangelho, procurando demonstrar a alguém que é
pecador, emprega o versículo Rm 3.23, onde se afirma que "todos pecaram",
emprego este que não é rigorosamente justificado pelas Escrituras. Corre-se o
perigo de cair em contradição, porque Romanos não ensina que somos pecadores
por cometermos pecados, e sim, pecamos por sermos pecadores. É mais por
constituição do que por ação que somos pecadores. Como Rm 5.19 o expressa:
"Pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores".
Como é que nos tornamos pecadores? Pela desobediência de Adão. Não nos
tornamos pecadores por aquilo que fizemos, e sim, devido àquilo que fez Adão.
O capítulo 3 chama nossa atenção àquilo que fizemos — "todos pecaram"
— não é, porém, por isso que viemos a ser pecadores.
Perguntei, certa vez, a uma
classe de crianças: "O que é um pecador? " e a sua resposta foi
imediata: "Um que peca". Sim, aquele que peca é pecador, mas seu ato
apenas comprova que já é pecador. Mesmo aquele que não comete pecados, se
pertence à raça de Adão, também é pecador e necessita, igualmente, da redenção.
Há pecadores maus e pecadores bons, pecadores morais e pecadores corruptos,
mas todos são igualmente pecadores. Pensamos, às vezes, que tudo nos iria bem
se não fizéssemos determinadas coisas; o problema, no entanto, é muito mais
profundo do que aquilo que fazemos: está naquilo que somos. O que se conta é o
nascimento: sou pecador porque nasci de Adão. Não é questão do meu
comportamento ou da minha conduta, e, sim, da minha hereditariedade, do meu
parentesco. Não sou pecador porque peco, mas peco porque descendo de linhagem
má. Peco por ser pecador.
Tendemos a pensar que o que
fizemos pode ser muito mau, e que nós mesmos não somos tão maus assim. O que
Deus deseja realmente nos mostrar é que nós é que somos fundamentalmente errados.
A raiz do problema é o pecador: é com ele que se deve tratar. Os nossos pecados
são solucionados pelo Sangue, mas nós próprios somos tratados pela Cruz. O
Sangue nos perdoa pelo que fizemos; a Cruz nos liberta daquilo que somos.
A condição
do homem por natureza
Chegamos pois a Romanos
5.12-21. Nesta grande passagem, a graça se contrasta com o pecado, e a obediência
de Cristo com a desobediência de Adão. A passagem inicia a segunda seção de
Romanos (5.12 a 8.39), com que nos ocuparemos agora de maneira especial,
tirando dela a conclusão que se acha no versículo 19, já citado: "Porque,
como pela desobediência de um só homem muitos se tornaram pecadores, assim
também por meio da obediência de um só muitos se tornarão justos". O
Espírito de Deus procura aqui nos mostrar, em primeiro lugar, o que somos, e
depois como chegamos a ser o que somos. No começo da nossa vida cristã, ficamos
preocupados com o que fazemos, e não com o que somos; sentimo-nos mais tristes
pelo que temos feito, do que pelo que somos. Pensamos que, se pudéssemos
retificar certas coisas, seríamos bons cristãos, e então, procuramos modificar
as nossas ações. Os resultados, porém, não são o que esperávamos. Descobrimos,
com grande espanto, que se trata de algo mais do que apenas certas dificuldades
externas — que realmente há no íntimo um problema mais sério. Procuramos
agradar ao Senhor, descobrimos, porém, que há algo dentro de nós que não
deseja agradar-Lhe. Procuramos ser humildes, mas há algo em nosso próprio-eu
que se recusa a ser humilde. Procuramos demonstrar afeto, mas não sentimos
ternura no íntimo. Sorrimos e procuramos parecer muito amáveis, mas no íntimo
sentimos absoluta falta de amabilidade. Quanto mais procuramos corrigir as
coisas na parte exterior, tanto melhor entendemos quão profundamente se arraigou
o problema na parte interior. Então, chegamo-nos ao Senhor, dizendo:
"Senhor, agora compreendo! Não é só o que tenho feito que está
errado! Eu estou errado".
A conclusão de Romanos 5.19
começa a se tornar clara para nós. Somos pecadores. Somos membros de uma raça
que é, constitucionalmente, diferente do que Deus intencionou que fosse. Por
causa da queda, houve fundamental transformação no caráter de Adão, em virtude
do que se tornou pecador, constitucionalmente incapaz de agradar a Deus e a
semelhança familiar que todos nós temos com ele não é meramente superficial —
expressa-se também no nosso caráter interior. Como aconteceu isto? "Pela
desobediência de um", diz Paulo.
A nossa vida vem de Adão.
Onde estaria você agora, se o seu bisavô tivesse morrido com três anos de
idade? Teria morrido nele! A sua experiência está unida à dele. A experiência
de cada um de nós está unida à de Adão da mesmíssima forma. Potencialmente,
todos nós estávamos no Éden quando Adão se rendeu às palavras da serpente.
Todos estamos envolvidos no pecado de Adão e, sendo nascidos "em
Adão", recebemos dele tudo aquilo em que ele se tornou, como resultado do
seu pecado — quer dizer, a natureza de Adão, que é a natureza do pecador.
Derivamos dele a nossa existência, e, porque sua vida se tornou pecaminosa, e
pecaminosa a sua natureza, a natureza que dele derivamos também é pecaminosa.
De modo que o problema está na nossa hereditariedade e não no nosso
procedimento. A menos que possamos modificar o nosso parentesco, não há
livramento para nós.
Mas é precisamente neste
ponto que encontraremos a solução do nosso problema, porque foi exatamente
assim que Deus encarou a situação.
Como em Adão,
assim em Cristo
Em Romanos 5.12-21, não
somente se nos diz algo a respeito de Adão, mas também em relação ao Senhor Jesus.
"Porque, como pela desobediência de um só homem muitos se tornaram
pecadores, assim também por meio da obediência de um só muitos se tornaram
justos" (19). Em Adão recebemos tudo o que é de Adão; em Cristo recebemos
tudo o que é de Cristo.
As expressões "em
Adão" e "em Cristo" são muito pouco compreendidas pelos
cristãos, e desejo salientar, por meio de uma ilustração que se acha na
Epístola aos Hebreus, o significado racial e hereditário da expressão "em
Cristo". Na primeira parte da carta, o escritor procura demonstrar ser
Melquisedeque maior do que Levi. A finalidade desta demonstração é provar que o
sacerdócio de Cristo é maior do que o de Arão, que era da tribo de Levi. Já
que o sacrifício de Cristo é "segundo a ordem de Melquisedeque"
(Hebreus 7.14-17) e o de Arão, segundo a ordem de Levi, o argumento gira em
tomo de provar que Melquisedeque é maior do que Levi.
Hebreus 7 diz que Abraão,
voltando da batalha dos reis (Gênesis 14), ofereceu a Melquisedeque o dízimo
dos despojos e recebeu da parte dele uma bênção, revelando ser ele de menor
categoria do que Melquisedeque, porque é o menor que oferece ao maior (Hb 7.7).
Outrossim, o fato de Abraão ter oferecido o dízimo a Melquisedeque implica que
Isaque, "em Abraão", também o ofereceu, e o mesmo se aplica a Jacó,
e também a Levi. De modo que Levi é de menor categoria do que Melquisedeque, e
o sacerdócio dele inferior ao do Senhor Jesus. Nem sequer se pensava em Levi na
época da batalha dos reis. Contudo, fez sua oferta na pessoa do seu pai, antes
de ter sido gerado por ele (Hb 7.9,10).
Ora, é justamente isto que
significa a expressão "em Cristo". Abraão, como a cabeça da família
da fé, incluiu, em si mesmo, toda a família. Quando ele fez a sue oferta a Melquisedeque, toda a sua
família participou daquele ato. Não fizeram ofertas separadamente, como
indivíduos, mas estavam nele, porque toda a sua semente estava incluída nele.
Apresenta-se-nos assim uma
nova possibilidade. Em Adão, tudo se perdeu. Pela desobediência de um homem,
fomos todos constituídos pecadores. O pecado entrou por ele, e, pelo pecado,
entrou a morte, e desde aquele dia o pecado impera em toda a raça, produzindo a
morte. Agora, porém, um raio de luz incide sobre a cena. Pela obediência de
Outro, podemos ser constituídos justos. Onde o pecado abundou, superabundou a
graça, e, como o pecado reinou na morte, do mesmo modo a graça pode reinar por
meio da justiça para a vida eterna por Jesus Cristo, nosso Senhor (Romanos 5.19-21).
O nosso desespero está em Adão; a nossa esperança está em Cristo.
O processo divino da libertação
Deus certamente deseja que
estas considerações nos levem à libertação prática do pecado. Paulo deixa isto
bem claro ao iniciar o capítulo 6 desta carta com a pergunta:
"Permaneceremos no pecado? " Todo o seu ser se revolta perante a
simples sugestão. "De modo nenhum", exclama. Como podia um Deus santo
ter satisfação em possuir filhos não santos, presos com os grilhões do pecado?
E, por isso, "como viveremos ainda no pecado? " (Rm 6.1,2). Deus
ofereceu, portanto, provisão certa e adequada para que fossemos libertados do
domínio do pecado.
Mas aqui está o nosso
problema. Nascemos pecadores; como podemos extirpar a nossa hereditariedade
pecaminosa? Desde que nascemos em Adão, como podemos sair dele, livrando-nos
dele? Quero afirmar de imediato que o Sangue não nos pode tirar para fora de
Adão. Há somente um caminho. Desde que entramos nele pelo nascimento, devemos
sair dele pela morte. Para nos despojarmos da nossa pecaminosidade, temos que
nos despojar da nossa vida. A escravidão ao pecado veio pelo nascimento; a
libertação do pecado vem pela morte - e foi exatamente este o caminho de escape
que Deus ofereceu. A morte é o segredo da emancipação. Estamos mortos para o
pecado (Rm 6.2).
Como, afinal, podemos nós
morrer? Alguns de nós procuramos, mediante grandes esforços, libertar-nos desta
vida pecaminosa, mas a achamos muito tenaz. O caminho de saída não é nos
matarmos, e sim, reconhecer que Deus em Cristo cuidou da nossa situação. É
esta a idéia contida na seguinte declaração do apóstolo: "todos os que
fomos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados na sua morte" (Rm 6.3).
Se, porém, Deus solucionou
nosso caso "em Cristo Jesus", logo temos que estar nEle, para
que isto se torne realidade eficaz, e assim surge problema igualmente grande.
Como podemos "entrar" em Cristo? É neste sentido que Deus vem de novo
em nosso auxílio. Não temos mesmo meio algum de entrar nEle, mas o que importa
é que não precisamos tentar entrar, porque já estamos nEle. Deus
fez por nós o que não poderíamos fazer por nós mesmos. Ele nos colocou em
Cristo. Quero recordar I Co 1.30: "Vós sois dele (isto é, de Deus), em
Cristo Jesus". Graças a Deus! Não nos incumbe sequer de divisar um caminho
de acesso ou elaborar um plano. Deus fez os planos necessários. Não só planejou
como também executou o plano. "Vós sois dele, em Cristo Jesus".
Estamos nEle; portanto, não precisamos procurar entrar. É um ato divino, e está
consumado.
Se isto é verdade, seguem-se
certos resultados. Na ilustração do capítulo 7 de Hebreus vimos que "em
Abraão" todo Israel — e, portanto, Levi, que ainda não nascera — ofereceu
o dízimo a Melquisedeque. Não fizeram esta oferta separada e individualmente,
mas estavam em Abraão quando este fez a oferta, e, ao fazê-la, incluiu, nesse
ato, toda a sua semente. Isto é, pois, uma verdadeira figura de nós próprios
"em Cristo". Quando o Senhor Jesus estava na Cruz, todos nós morremos
— não individualmente, porque ainda nem tínhamos nascido — mas, estando nEle,
morremos nEle. "Um morreu por todos, logo todos morreram" (II Co
5.14). Quando Ele foi crucificado, todos nós fomos crucificados.
"Vós sois dele, em
Cristo Jesus". O próprio Deus nos colocou em Cristo e, tratando com Cristo,
Deus tratou com toda a raça. O nosso destino está ligado ao Seu. Pelas
experiências por que Ele passou, nós igualmente passamos, porque estar "em
Cristo" significa ter sido identificado com Ele, tanto na Sua morte como
na Sua ressurreição. Ele foi crucificado; o que, então, sucedeu conosco?
Devemos pedir a Deus que nos crucifique? Nunca! Quando Cristo foi crucificado,
nós fomos crucificados; sendo a Sua crucificação passada, a nossa não pode
situar-se no futuro. Desafio qualquer pessoa a encontrar um texto no Novo
Testamento que nos diga ser futura a nossa crucificação. Todas as referências a
ela se encontram no tempo aoristo do Grego, tempo que significa "feito de
uma vez para sempre", "eternamente passado" (ver Rm 6.6, Gl
2.20; 5.24). E como um homem não poderia se suicidar nunca pela crucificação,
por ser fisicamente impossível, assim também, em termos espirituais, Deus não
requer que nos crucifiquemos a nós próprios. Fomos crucificados quando Ele foi
crucificado, pois Deus nos incluiu nEle na Cruz. A nossa morte, em Cristo, não
é meramente uma posição de doutrina, é um fato eterno.
A Morte e a Ressurreição dEle são representativas e
inclusivas
Quando o Senhor Jesus morreu
na Cruz, derramou o Seu Sangue, dando assim a Sua vida, isenta de pecado, para
expiar os nossos pecados e assim satisfez a justiça e a santidade de Deus. Tal
ato constitui prerrogativa exclusiva do Filho de Deus. Nenhum homem poderia
participar dele. A Escritura nunca diz que nós derramamos o nosso sangue
juntamente com Cristo. Na Sua obra expiatória, perante Deus, Ele agiu sozinho.
Ninguém poderia participar dele com Ele. O Senhor, no entanto, não morreu
apenas para derramar o Seu sangue: morreu para que nós pudéssemos morrer.
Morreu como nosso Representante. Na Sua morte Ele incluiu a você e a
mim.
Freqüentemente usamos os
termos "substituição" e "identificação" para descrever
estes dois aspectos da morte de Cristo. A palavra "identificação"
muitas vezes é boa; pode, porém, sugerir que a experiência começa do nosso lado:
que sou eu que procuro identificar-me com o Senhor. Concordo que a palavra é
verdadeira, mas deve ser empregada mais tarde. É melhor começar com a verdade
de que o Senhor me incluiu na Sua morte. É a morte "inclusiva" do
Senhor que me habilita a me identificar com Ele,ao invés de ser eu quem me
identifico com Ele a fim de ser incluído. E aquilo que Deus fez, incluindo-me
em Cristo, que importa. É por isso que as duas palavras "em Cristo"
me são sempre tão queridas ao coração.
A morte do Senhor Jesus é inclusiva,
e Sua ressurreição igualmente. Examinando o primeiro capítulo de I Coríntios,
estabelecemos que estamos "em Cristo", e agora, mais pelo fim da
Carta, veremos algo mais sobre o significado disto. Em I Co 15.45-47,
atribuem-se ao Senhor Jesus dois títulos notáveis. É chamado "o último
Adão" e, igualmente, "o segundo Homem". A Escritura não se Lhe
refere como o segundo Adão e sim, como o "último Adão", nem se Lhe
refere como o último Homem, e sim, como "o segundo Homem". Note-se
esta diferença, que encerra uma verdade de grande valor.
Como o último Adão, Cristo é
a soma total da humanidade; como o segundo Homem, Ele é a Cabeça de uma nova
raça. De modo que temos aqui duas uniões, referindo-se uma à Sua morte e outra
à Sua ressurreição. Em primeiro lugar, a Sua união com a raça, como "o
último Adão", começou, historicamente, em Belém, e terminou na Cruz e no
sepulcro. E ali reuniu em Si mesmo tudo o que era de Adão, levando-o ao
julgamento e à morte. Em segundo lugar, a nossa união com Ele, como "o
segundo Homem", começa com a ressurreição e termina na eternidade, ou
seja, nunca, pois, tendo acabado por meio da Sua morte com o primeiro homem em
quem se frustrara o propósito de Deus, ressuscitou como o Cabeça de uma nova
raça de homens, em que será plenamente realizado aquele propósito.
Quando, portanto, o Senhor
Jesus foi crucificado, foi no Seu caráter de último Adão, reunindo em Si e
anulando tudo o que era do primeiro Adão. Como o último Adão, pôs termo à
velha raça - como o segundo Homem, inicia a nova raça. É na ressurreição que Se
apresenta como o segundo Homem, e nesta posição nós também estamos incluídos.
"Porque se fomos unidos com ele na semelhança da sua morte, certamente o
seremos também na semelhança da sua ressurreição" (Rm 6.5). Morremos nEle,
como o último Adão; vivemos nEle, como o segundo Homem. A Cruz é, pois, o
poder de Deus que nos transfere de Adão para Cristo.
3
A
vereda do progresso:
sabendo
A nossa velha história
termina com a Cruz; a nossa nova história começa com a Ressurreição. "E
assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura: as cousas antigas já
passaram; eis que se fizeram novas" (II Co 5.17). A Cruz põe termo à
primeira criação, e por meio desta morte surge a nova criação em Cristo, o
segundo Homem. Se estamos "em Adão", tudo quanto em Adão está, necessariamente
recai sobre nós. Torna-se involuntariamente nosso, pois nada precisamos fazer
para disto participarmos. Sem esforço, sem perdermos a calma, sem cometermos
mais alguns pecados, vem sobre nós independentemente de nós mesmos. Da mesma
forma, se estamos "em Cristo", tudo o que há em Cristo nos é
atribuído pela livre graça, sem esforço nosso, e, simplesmente, pela fé.
Embora seja a pura verdade
dizer que em Cristo temos tudo quanto precisamos, pela livre graça, talvez isto
não nos pareça muito prático. Como se pode tornar realidade em nossa
experiência?
Descobrimos através do estudo
dos capítulos 6, 7 e 8 de Romanos que são quatro as condições para se viver uma
vida cristã normal:
a) Sabendo;
b) Considerando-nos;
c) Oferecendo-nos a Deus;
d) Andando no Espírito.
Estas quatro condições se nos
apresentam nesta mesma ordem. Se quisermos viver aquela vida, teremos que dar
todos estes quatro passos. Não um, nem dois, nem três, mas os quatro. À medida
que estudarmos cada um © deles, confiaremos que o Senhor, pelo Seu Espírito
Santo, iluminará o nosso entendimento e buscaremos o Seu o auxílio,
agora, para dar o primeiro grande passo.
A nossa morte com Cristo, um fato histórico
A passagem do nosso estudo
agora é Rm 6.1-11. Aqui se vê que a morte do Senhor Jesus é representativa e inclusiva.
Na Sua morte, todos nós morremos. Nenhum de nós pode progredir espiritualmente
sem perceber isto. Assim como Cristo levou os nossos pecados sobre a Cruz,
tampouco podemos ter a santificação sem termos visto que nos levou a nós
próprios na Cruz. Não somente foram colocados sobre Ele os nossos pecados, mas
também foram incluídas nEle as nossas pessoas.
Como se recebe o perdão?
Compreendemos que o Senhor Jesus morreu como nosso Substituto, e que levou
sobre Ele os nossos pecados, e que o Seu sangue foi derramado para nos
purificar. Quando percebemos que todos os nossos pecados foram levados sobre a
Cruz, o que fizemos? Dissemos, porventura: "Senhor Jesus, por favor, vem
morrer pelos meus pecados"? Não, de forma alguma; apenas demos graças ao
Senhor. Não Lhe suplicamos que viesse morrer por nós, porque compreendemos que
Ele já o tinha feito.
Esta verdade que diz respeito
ao nosso perdão também diz respeito à nossa libertação. A obra já foi feita.
Não há necessidade de orar, e, sim, apenas de dar louvores. Deus nos incluiu a
todos em Cristo, de modo que quando Cristo foi crucificado, nós também o fomos.
Não há, portanto, necessidade de orar: "Sou uma pessoa muito má; Senhor,
crucifica-me, por favor". Apenas precisamos louvar ao Senhor por termos
morrido quando Cristo morreu. Morremos nEle: louvemo-Lo por isso e vivamos à
luz desta realidade. "Então creram nas Suas palavras e Lhe cantaram
louvores" (Salmos 106.12).
Você crê na morte de Cristo?
É claro que sim. Então, a mesma Escritura que diz que Ele morreu por nós diz
também que nós morremos com Ele. Prestemos atenção a este fato: "Cristo
morreu por nós" (Rm 5.8). Esta é a primeira declaração que se nos
apresenta com toda a clareza, a segunda, porém, não é menos clara: "Foi
crucificado com ele o nosso velho homem" (Rm 6.6). "Morremos com
Cristo" (Rm 6.8).
Quando somos nós crucificados
com Ele? Qual é a data da crucificação do nosso homem velho? É amanhã? Foi
ontem? Ou hoje? Talvez nos facilite considerar de outra forma a afirmação de
Paulo, dizendo: "Cristo foi crucificado com (isto é, ao mesmo tempo que) o
nosso homem velho". Foi Cristo crucificado? Então como pode ser diferente
o meu caso? Se Ele foi crucificado há quase dois mil anos, e eu com Ele, pode
se dizer que a minha crucificação ocorrerá amanhã? Pode a Sua ser passada e a
minha, presente ou futura? Graças a Deus, porque quando Ele morreu na Cruz, eu
morri com Ele. Não morreu apenas em meu lugar, e, sim, levou-me com Ele à Cruz,
de forma que, quando Ele morreu, eu morri com Ele. E se eu creio na morte do
Senhor Jesus, posso também crer na minha própria morte, tão seguramente como
creio na dEle.
Por que acredita que o Senhor
Jesus morreu? Qual é o fundamento da sua fé? É porque sente que Ele morreu?
Não, você nunca o sentiu. Quando o Senhor foi crucificado, dois ladrões foram
crucificados ao mesmo tempo. Não duvida de que eles foram crucificados com Ele,
porque a Escritura o afirma de modo absolutamente claro. Assim também, crê na
morte do Senhor, porque a Palavra de Deus a declara.
Crendo na morte do Senhor
Jesus, e na morte dos ladrões com Ele, o que crê a respeito da sua própria morte?
A sua crucificação é mais íntima do que a destes. Foram crucificados ao mesmo
tempo que o Senhor, mas em cruzes diferentes, enquanto você foi crucificado na
mesma Cruz com Ele, porque estava nEle quando Ele morreu. Como pode saber
disto? É porque Deus o disse.
Não depende daquilo que você
sente. Cristo morreu, quer você sinta isso, quer não sinta. Nós também morremos,
independentemente do que sentimos quanto a isso; trata-se de fatos divinos: que
Cristo morreu, é um fato, que os dois ladrões morreram, é outro, e a nossa
morte é igualmente um fato. Posso afirmar: "Você já morreu". Já
está posto de parte, eliminado! O "Eu" que você aborrece ficou na
Cruz, em Cristo. E "quem morreu, s justificado está do pecado" (Rm
6.7). E este o Evangelho para os cristãos!
A nossa crucificação jamais
se tornará eficaz através da nossa vontade, do nosso esforço, e sim, unicamente
por aceitarmos o que o Senhor Jesus Cristo fez na Cruz. « Os nossos olhos devem
estar abertos à obra consumada» no Calvário. Talvez você tenha procurado, antes
de receber a salvação, salvar-se a si mesmo, lendo a Bíblia, orando, freqüentando
a Igreja, dando ofertas. Depois, um dia, se lhe abriram os olhos e você
percebeu que a plena salvação já lhe fora provida na Cruz. Você simplesmente a
aceitou, agradecendo a Deus, e então seu coração foi permeado pela paz e
alegria. Ora, a salvação foi dada na mesma base que a santificação: recebemos a
libertação do pecado do mesmo modo que recebemos o perdão dos pecados.
O modo de Deus operar a
libertação é inteiramente diferente dos processos a que o homem recorre. O
homem se esforça por suprimir o pecado, procurando vencê-lo: o processo divino
consiste em remover o pecador. Muitos cristãos se lamentam das suas fraquezas,
pensando que, se fossem mais fortes, tudo lhes iria bem. A idéia de que seja a
nossa fraqueza que nos causa os malogros na tentativa de viver uma vida santa,
e de que se exige da nossa parte mais esforço, conduz naturalmente a este
conceito falso do caminho da libertação. Se é o poder do pecado e nossa
incapacidade de vencê-lo que nos preocupa, concluímos que o que nos falta é mais
poder. "Se fosse mais forte", dizemos, "poderia vencer as
explosões violentas do meu mau gênio", e assim, pedimos que o Senhor nos
fortaleça para podermos nos dominar a nós mesmos.
Tal conceito, porém, está
completamente errado, e não é o cristianismo. O meio divino de nos libertar do
pecado não consiste em nos fazer cada vez mais fortes, «mas antes em nos tornar
cada vez mais fracos. Certamente se pode dizer que esta é uma forma de vitória
bastante estranha, mas é essa a maneira de Deus agir em nós. Deus nos livra do
domínio do pecado, não por meio de fortalecer o nosso velho homem, e sim,
crucificando-o; não o por ajudá-lo a fazer coisa alguma, e sim, por
removê-lo do campo de ação. Talvez você já tenha procurado em vão, durante
muitos anos, exercer domínio sobre si próprio, e talvez seja essa sua
experiência até agora. Uma vez, porém, que você percebe a verdade e reconhece
que realmente não possui em si mesmo poder algum para fazer seja o que for,
passa a saber que quando Deus colocou você de lado, tudo foi realizado, pondo
termo ao esforço humano.
O primeiro passo: "Sabendo isto..."
A vida cristã normal tem que
começar com um "saber" muito definido, que não é apenas saber algo a
respeito da verdade, nem compreender alguma doutrina importante. Não é, de
forma alguma, um conhecimento intelectual, mas consiste em abrir os olhos do
coração para ver o que temos em Cristo.
Como é que você sabe que os
seus pecados estão perdoados? É porque o seu pastor lho disse? Não, você
simplesmente o sabe. Se alguém lhe perguntar como sabe, apenas
responderá: "Eu sei". Tal conhecimento vem ° por revelação do próprio
Senhor. Evidentemente, o fato do perdão dos pecadores está na Bíblia, mas para
a Palavra de Deus escrita se transformar em Palavra de Deus viva em você, Deus
teve que lhe dar o "espírito de sabedoria e de revelação no pleno
conhecimento dele" (Ef 1.17). Você precisou ficar conhecendo Cristo deste
modo, e é sempre assim: há ocasiões, relativas a cada nova revelação de Cristo,
em que se sabe no próprio coração e se "vê" no espírito. Uma luz brilha
no seu íntimo de modo que você fica persuadido do fato. O que é verdadeiro
acerca do perdão dos pecados não é menos verdadeiro a respeito da libertação
do pecado. Quando a luz de Deus começa a raiar em nosso coração, vemos que
estamos em Cristo. Não é porque alguém nos disse isto, nem meramente
porque Romanos 6 o afirma. É algo mais do que isso. Sabemo-lo porque Deus no-lo
revelou pelo Seu Espírito.
Talvez não o sintamos.
Sabemos, no entanto, porque o temos visto. Uma vez que temos visto a nós mesmos
em Cristo, nada pode abalar a nossa certeza a respeito daquele bendito fato.
Se se perguntar a alguns
crentes que entraram na vida cristã normal, como chegaram a esta experiência,
uns dirão que foi desta forma, e outros, daquela. Cada um ressalta a forma
específica como entrou na experiência, e cita versículos para apoiá-la; e,
infelizmente, muitos cristãos procuram usar suas experiências especiais e suas
escrituras especiais para combater outros cristãos. A verdade, porém, é que
embora entrem por diferentes caminhos na vida mais profunda, não devemos
considerar mutuamente exclusivas as experiências ou doutrinas que sublinham, e
antes, complementares. Uma coisa é certa: qualquer experiência verdadeira que
tenha valor à vista de Deus, teve que ser alcançada através de se descobrir
algo mais do significado da Pessoa e da Obra do Senhor Jesus. Esta é a prova
crucial e absolutamente segura.
Paulo nos mostra que tudo
depende desta descoberta: "Sabendo isto, que foi crucificado com ele o
nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos o
pecado como escravos" (Rm 6.6).
A revelação
divina é essencial ao conhecimento
Assim sendo, nosso primeiro
passo é buscar da parte de Deus o conhecimento que vem da revelação, não de nós
mesmos, mas da obra consumada do Senhor Jesus Cristo na Cruz. Quando Hudson
Taylor, o fundador da Missão para o Interior da China, entrou na vida cristã
normal, foi da seguinte forma. Ele fala do problema que havia muito estava
sentindo: o de saber como viver "em Cristo", como derivar da Videira
a seiva para si próprio. Sabia perfeitamente que devia ter a vida de Cristo emanando
através de si mesmo, e, contudo, sentia que não o tinha conseguido. Via
claramente que as suas necessidades deviam ser satisfeitas em Cristo. "Eu
sabia" — dizia ele, escrevendo à sua irmã, de Chinkiang, em 1869 —
"que se eu apenas pudesse permanecer em Cristo tudo iria bem. Mas, eu
não conseguia". Quanto mais procurava entrar em Cristo, tanto mais se
achava como que deslizando, por assim dizer, até que um dia a luz brilhou, a
revelação veio e ele entendeu tudo.
"Sinto que está aqui o
segredo: não em perguntar como vou conseguir tirar a seiva da videira para
colocá-la em mim mesmo, mas em me recordar que Jesus é a Videira — a
raiz, a cepa, as varas, os renovos, as folhas, a flor, o fruto, tudo, na
verdade".
Depois, ao dirigir-se a um
amigo que o tinha auxiliado:
"Não preciso de fazer
de mim mesmo uma vara. Sou parte dEle e apenas preciso crer nisso e
agir de conformidade. Já há muito, tinha visto esta verdade na Bíblia, mas
agora creio nela como realidade viva".
Foi como se alguma verdade
que sempre existia se tornasse verdadeira para ele pessoalmente, sob uma nova
forma. Outra vez escreve à irmã:
"Não sei até que ponto
serei capaz de me tornar inteligível a este respeito, pois que não há nada
novo ou estranho ou maravilhoso - er todavia, tudo é novo! Numa
palavra, "Eu era cego, e agora vejo". Estou morto e crucificado com
Cristo — sim, e ressurreto também e assunto... Deus me reconhece assim, e me
diz que é assim que me considera. Ele é Quem sabe... Oh, a alegria de ver esta
verdade! Oro, com todas as forças do meu ser, para que os olhos do teu
entendimento possam ser iluminados, para que vejas as riquezas que livremente
nos foram dadas em Cristo, e que te regozijes nelas".
Realmente, é coisa grandiosa
ver que estamos em Cristo! Procurar entrar numa sala dentro da qual já estamos
seria criar em nós um senso de confusão enorme — pensemos no absurdo de pedir
a alguém que nos ponha lá dentro.. Se reconhecemos o fato de que já estamos dentro,
não fazemos mais esforços para entrar. Se tivéssemos mais revelação, teríamos menos
orações e mais louvores. Muitas das nossas orações a nosso favor, são proferidas
porque somos cegos a respeito daquilo que Deus fez.
Lembro-me de um dia em Xangai
quando falava com um irmão bastante exaltado e preocupado quanto à sua condição
espiritual. Dizia ele: "Existem tantos que vi-_ vem vidas belas e santas!
Sinto vergonha de mim mesmo. Chamo-me cristão, e, todavia, quando me comparo
com outros, sinto que não sou cristão à altura, de forma alguma. Quero
conhecer essa vida crucificada, essa vida ressurreta, mas não a conheço. Não
vejo forma de alcançá-la". Outro irmão estava conosco e ambos falamos
durante duas horas ou mais, tentando levar o homem a ver que nada poderia ter,
separadamente de Cristo, mas os nossos esforços não alcançaram êxito. Disse o
nosso amigo: "A melhor coisa que se pode fazer é orar". "Mas, se
Deus já lhe deu tudo, por que precisa de orar? " perguntamos. "Ele
não o fez", respondeu o homem, "visto que eu ainda perco o meu
domínio próprio, falho ainda constantemente; de modo que devo continuar a
orar". "Bem", dissemos, "alcança aquilo por que ora?
". "Lamento dizer que não consigo nada", respondeu. Tentamos
chamar-lhe a atenção para o fato de que, assim como ele nada fizera em favor da
sua própria justificação, assim também ele não precisava fazer coisa alguma a
respeito da sua santificação. Em dado momento, um terceiro irmão muito usado
pelo Senhor, entrou e juntou-se a nós. Havia uma garrafa térmica em cima da
mesa, e este irmão pegou nela, dizendo: "O que é isto? " "Uma
garrafa térmica". "Bem, imaginemos que esta garrafa térmica pudesse
orar, e que começasse a orar da seguinte maneira: "Senhor, desejo muito
ser uma garrafa térmica. Concede a Tua graça, Senhor, para que eu me torne
uma garrafa térmica. Por favor, faze de mim uma!" O que diria o amigo?
""Penso que nem mesmo uma garrafa térmica seria tão pateta",
respondeu o nosso amigo. "Não faria sentido orar desse modo. Ela já é uma
garrafa térmica!" Então, aquele irmão disse: "Você está fazendo
exatamente a mesma coisa. Deus já o incluiu em Cristo; quando Ele morreu, você
morreu; quando Ele ressuscitou, você ressuscitou. Portanto, você não pode dizer
hoje: Quero morrer, quero ser crucificado; quero ter vida ressurreta. O Senhor
simplesmente olha para você e diz: "Você está morto! Você tem uma
vida nova!" Toda a sua oração é tão absurda como a da garrafa térmica.
Você não necessita de orar ao Senhor pedindo qualquer coisa. Necessita,
meramente, de ter os olhos abertos para ver que Ele já fez tudo isso".
Eis a questão. Não precisamos
trabalhar para alcançarmos a morte, nem precisamos esperar para morrer. Estamos
mortos. Agora, só nos falta reconhecer o que o Senhor já fez, e louvá-Lo
por isso. Uma nova luz desceu sobre aquele homem. Com lágrimas nos olhos,
disse: « "Senhor, louvo-Te porque já me incluíste em Cristo. Tudo o que é
dEle é meu!" A revelação chegara, e a fé possuía algo de que lançar mão. E
se você pudesse ter encontrado aquele irmão, mais tarde, que mudança
perceberia!
A Cruz atinge a raiz do nosso problema
Quero recordar, mais uma vez,
a natureza fundamental do que o Senhor operou na Cruz, assunto que merece o
maior destaque, porque precisamos entendê-lo.
Suponha que o governo do seu
país quisesse enfrentar rigorosamente a questão das bebidas alcoólicas e
decidisse que todo o País ficasse sob a "lei seca". Como seria posta
em prática tal decisão? Como poderíamos cooperar? Se revistássemos cada loja,
cada casa, por todo o país e destruíssemos todas as garrafas de vinho, cerveja
ou pinga que encontrássemos, resolveríamos assim o problema? Certamente que
não. Poderíamos livrar assim a terra de cada gota de bebida alcoólica existente
na praça, mas, por detrás daquelas garrafas de bebida se encontram as fábricas
que as produzem, e se não tocássemos nas fábricas, a produção continuaria e não
haveria solução permanente para o problema. As fábricas produtoras das
bebidas, as cervejarias e as destilarias por todo o país, teriam que ser
fechadas se quiséssemos resolver de forma permanente a questão do álcool.
Nós somos uma fábrica desta
natureza, e os nossos atos são a produção. O Sangue de Jesus Cristo, nosso
Senhor, resolveu a questão dos produtos, dos nossos pecados. De modo que a
questão do que temos feito já foi tratada; será que Deus Se detém aqui? Como se
trata daquilo que somos? Fomos nós que produzimos os pecados. A questão dos
nossos pecados foi resolvida, mas como vamos nós próprios ser tratados?
Crê que o Senhor purificaria todos os nossos pecados para então deixar por
nossa conta enfrentarmos a fábrica que os produz? Acredita que Ele
inutilizaria os produtos e que deixaria por nossa conta a fonte de produção?
Fazer tal pergunta é
responder-lhe. Deus não faz a obra pela metade. Pelo contrário, inutilizou os
produtos e encerrou a fábrica produtora.
A obra consumada de Cristo
realmente atingiu a raiz do nosso problema, solucionando-o. Para Deus não há
meia medida. "Sabendo isto", disse Paulo, "que foi crucificado
com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não
sirvamos o pecado como escravos" (Rm 6.6). "'Sabendo isto". Sim,
mas você o sabe de fato? "Ou, porventura, ignorais? " (Rm 6.3).
4
A
vereda do progresso:
considerar-se
Entramos agora num assunto
sobre o qual tem havido alguma confusão entre os filhos do Senhor. Diz respeito
àquilo que se segue a este conhecimento. Note-se a redação exata de Rm 6.6:
"Sabendo isto, que foi crucificado com ele o nosso velho homem". O
tempo do verbo é muito preciso: situa o acontecimento no passado distante. É
um acontecimento final, realizado de uma vez para sempre, e que não pode ser
desfeito. O nosso velho homem foi crucificado, uma vez para sempre, e jamais
pode voltar à situação de não crucificação. É isto que devemos saber.
O que se segue depois de
sabermos isto? O mandamento seguinte se acha no v. 11: "Assim também vós
considerai-vos mortos para o pecado", que é a seqüência natural do v. 6.
Leiamo-os juntamente: "Sabendo... que foi crucificado com ele o
nosso velho homem... considerai-vos mortos". Esta é a ordem.
Quando sabemos que o nosso velho homem foi crucificado com Cristo, o passo
seguinte é considerarmos esta verdade.
Infelizmente a ênfase da
verdade da nossa união com Cristo tem sido freqüentemente colocada na segunda
questão, a de nos considerarmos mortos, como se fosse este o ponto de partida,
enquanto que deveria ser ressaltada a necessidade de sabermos que
estamos mortos. A Palavra de Deus mostra claramente que "sabendo"
deve preceder o "considerar-se". "Sabendo isto...
considerai-vos". A seqüência é extremamente importante. O ato de nos
considerarmos deve basear-se no conhecimento do fato divinamente revelado,
pois, de outro modo, a fé não tem fundamento sobre que descansar e apoiar-se.
Deste modo, não devemos
ressaltar demasiadamente o considerar-se, ao ensinar esta matéria. As pessoas
sempre procuram considerar-se, sem previamente saber. Não tiveram
primeiramente uma revelação do fato, dada pelo Espírito, mas ainda procuram
considerar-se e logo se vêem a braços com toda espécie de dificuldades. Quando
a tentação se manifesta, começam furiosamente a se considerar: "Estou
morto; estou morto; estou morto!" Mas, no próprio ato de considerar-se,
perdem a serenidade. Depois, dizem, "Isto não dá certo, e não há valor em
Romanos 6.11". Realmente, devemos reconhecer que o v. 11 não tem qualquer
efeito sem o v.6. Acontece que, sem conhecermos que estamos mortos com Cristo,
nossa luta de nos considerarmos se tornará sempre mais intensa, e o resultado
será a derrota na certa.
Não quero dizer que não
precisamos realizar esta verdade na nossa experiência. Há a efetuação dessa
morte em termos de experiência, de que trataremos agora, mas a base de tudo é
que já fui crucificado, já está feito.
Qual é o segredo de
considerar, então? É revelação: precisamos de revelação da parte do próprio
Deus (Mt 16.17; Ef 1.17,18). Devemos ter os olhos abertos para o fato da nossa
união com Cristo, e isso é algo mais do que conhecê-la como doutrina. Tal
revelação não é coisa vaga e indefinida. Muitos de nós podemos recordar o dia
em que vimos claramente que Cristo morreu por nós, e devemos ter igual certeza
da hora em que percebemos que nós morremos com Cristo. Não deve ser nada de
confuso, mas algo muito definido, porque é a base em que prosseguimos. Estou
morto não porque me considero assim, mas por causa daquilo que Deus fez para
comigo em Cristo — por isso considero-me morto. É este o verdadeiro
sentido de considerar-se. Não se trata de considerar-se para se ficar morto,
mas de considerar-se morto porque essa é a pura realidade.
O segundo passo: "Assim, também vós considerai-vos"
O que significa
considerar-se? "Considerar", no Grego, significa fazer contas, fazer
escrituração comercial.
A contabilidade é a única
coisa no mundo que nós, seres humanos, sabemos fazer corretamente. O artista
pinta uma paisagem. Pode fazê-lo com perfeita exatidão? O historiador pode
assegurar exatidão absoluta de qualquer relato, ou o cartógrafo a perfeita
exatidão de qualquer mapa? O melhor que podem fazer são aproximações notáveis.
Mesmo na conversação de cada dia, procurando contar algum incidente com a
melhor intenção de ser honestos e fiéis à verdade, não conseguimos exatidão
completa. Há, na maioria das vezes, uma tendência ao exagero, aumentando ou
diminuindo, empregando uma palavra a mais ou a menos. O que pode então um homem
fazer que seja absolutamente digno de confiança? Aritmética! Não há, neste
campo, qualquer possibilidade de errar. Uma cadeira, mais uma, é igual a duas
cadeiras. Isto é verdade em Londres e na Cidade do Cabo, em Nova Iorque no
Ocidente ou em Singapura no Oriente. Por todo o mundo, e em todos os tempos, um
mais um é igual a dois.
Tendo dito, pois, que a
revelação leva naturalmente ao ato de considerar-se, não devemos perder de
vista que um mandamento nos foi dado: "Considerai-vos..." Há uma
atitude definida a tomar. Deus pede que façamos a escrituração, lançando na conta:
"Eu morri", e que permaneçamos nesta realidade. Quando o Senhor
Jesus estava na Cruz, eu estava lá nEle; portanto, eu o considero como um fato
verdadeiro. Considero e declaro que morri nEle. Paulo disse:
"Considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus". Como é
isto possível? "Em Cristo Jesus". Nunca se esqueça que é sempre, e
somente, verdade em Cristo. Se você olha para si próprio, não achará aí
esta morte — é questão de fé nEle, de olhar para o Senhor e ver o que Ele fez.
Reconheça e considere o fato em Cristo, e permaneça nesta atitude de fé.
Considerar-se e a fé
Os primeiros quatro capítulos
e meio de Romanos falam de fé, fé e fé. Somos justificados pela fé nEle (Rm
3.28; 5.1). A justificação, o perdão dos nossos pecados e a paz com Deus são
nossos pela fé; sem fé, ninguém pode possuí-los. Na segunda seção de Romanos,
no entanto, não encontramos a fé mencionada tantas vezes, e à primeira vista
poderia parecer que aqui há diferença de ênfase. Não é realmente assim, porque
a expressão "Considerar-se" toma o lugar das palavras "fé"
e "crer". Considerar-se e a fé são, aqui, praticamente a mesma coisa.
O que é a fé? É a minha
aceitação de fatos divinos, e seu fundamento sempre se acha no passado. O que
se relaciona com o futuro é mais esperança do que fé, embora a fé tenha, muitas
vezes, o seu objetivo ou alvo no futuro, como em Hebreus 11. Talvez seja por
essa razão que a palavra aqui escolhida é considerar-se. É uma palavra que se
relaciona unicamente com o passado — com aquilo que vemos já realizado ao olhar
para trás e não com qualquer coisa ainda por acontecer. É este o gênero de fé
descrito em Mc 11.24: "Tudo quanto em oração pedirdes, crede que
recebestes, e será assim convosco". A declaração é que se crer que já
recebeu o que pediu (isto é, evidentemente, em Cristo), então "será
assim". Crer que seja provável alcançar alguma coisa, e que seja possível
obtê-la, mesmo que ainda virá a obtê-la, não é fé no sentido aqui expresso. Fé
é crer que já alcançou o que pede. Somente o que se relaciona com o passado é
fé neste sentido. Aqueles que dizem que "Deus pode" ou "Pode ser
que Deus o faça", não crêem de forma alguma. A fé sempre diz: "Deus
já o fez".
Quando é, portanto, que tenho
fé no que diz respeito à minha crucificação? Não quando digo que Deus pode ou
quer ou deve crucificar-me, mas quando, com alegria, digo: "Graças a Deus,
em Cristo eu estou "crucificado!" Em Romanos 3 vemos o Senhor
Jesus levando os nossos pecados e morrendo como nosso Substituto, para que
pudéssemos ser perdoados. Em Romanos 6, vemo-nos incluídos na morte de Cristo,
por meio da qual Ele conseguiu a nossa libertação. Quando nos foi revelado o
primeiro fato, cremos nEle para a justificação. Deus nos manda considerar o
segundo fato para a nossa libertação. De modo que, para fins práticos,
"Considerar-se" na segunda seção de Romanos toma o lugar de
"fé" na primeira seção. Não há diferença de ênfase; a vida cristã
normal é vivida progressivamente, do mesmo modo que inicialmente se entra nela,
pela fé no fato divino: em c e Cristo e na Sua Cruz.
Tentação e
fracasso, desafios à fé
Para nós, os grandes fatos da
história são que o Sangue trata de todos os nossos pecados e que a Cruz trata
de nós próprios. Mas que diremos com respeito à tentação? Qual deverá ser a
nossa atitude quando, depois de termos visto e crido nestes fatos, descobrimos
que os velhos desejos querem surgir de novo? Pior ainda, se caímos em pecado
conhecido, mais uma vez? Então cai por terra o que foi dito acima?
Lembremo-nos de que um dos
principais objetivos do Diabo é nos levar a duvidar das realidades divinas.
(Compare Gênesis 3.4).
Após termos percebido, pela
revelação do Espírito de Deus, que realmente estamos mortos com Cristo, e que
devemos nos considerar assim, o Diabo virá, dizendo: "Alguma coisa está se
mexendo no seu íntimo; o que você diz a isto? Pode dizer que isto é morte?
" Qual será a nossa resposta em tal caso? Aqui está a prova crucial. Vamos
crer em fatos tangíveis do plano natural, que estão perante os nossos olhos, ou
nos fatos intangíveis do plano espiritual, que não se vêem nem se provam
cientificamente?
Devemos ser muito cuidadosos
a este respeito. É importante recordarmos os fatos divinos declarados na
Palavra de Deus sobre os quais deve apoiar-se a nossa fé. Em que termos Deus declara
que foi efetuada a nossa libertação? Não se diz que o pecado, como um princípio
em nós, foi desarraigado ou removido. Não, porque está bem presente, e se lhe
for dada oportunidade, nos vencerá e nos levará a cometer mais pecados, quer
consciente quer inconscientemente. É por essa razão que sempre devemos tomar
conhecimento da operação do precioso Sangue.
O método de Deus ao tratar
dos pecados cometidos é direto, apagando-os da lembrança por meio do Sangue, mas,
no que diz respeito ao princípio do pecado e a libertação do seu poder, Deus
opera através do método indireto: não remove o pecado, e, sim, o pecador
O nosso velho homem foi crucificado com Cristo, e, por causa disto, o corpo,
que antes fora veículo do pecado, fica desempregado (Rm 6.6). O pecado, o
velho senhor, ainda está presente, mas o escravo que o servia foi morto,
estando assim fora do seu alcance. Seus membros agora estão desempregados. A
mão que jogava de apostas fica desempregada, assim como a língua de quem
xingava, e tais membros passam agora a ser úteis, em vez disso, "a Deus
como instrumentos de justiça" (Rm 6.13).
A libertação do pecado é tão
real, que João pôde escrever, confiante: "Todo aquele que é nascido de
Deus não vive na prática do pecado... não pode viver pecando" (I João
3.9), expressão essa que, erradamente compreendida, poderia nos confundir.
João não quis dizer que o pecado nunca mais entra em nossa história e que não
cometeremos mais pecados. Diz que o pecar não está na natureza daquele que é
nascido de Deus. A vida de Cristo foi plantada em nós pelo novo nascimento, e a
Sua natureza não é caracterizada por cometer pecados. Há, porém, uma grande
diferença entre a natureza de uma coisa e a sua história, e há uma grande
diferença entre a natureza da vida que há em nós e a nossa história.
A questão consiste em
escolher quais os fatos a que damos valor e que orientam a nossa vida: os fatos
tangíveis da nossa experiência diária ou o fato muito mais importante, de que
agora estamos "em Cristo". O poder . da Sua ressurreição está ao
nosso lado, e todo o poder de Deus está operando na nossa salvação (Rm 1.16),
mas o assunto ainda depende de tornarmos real, na história, o que já é uma
realidade divina.
"Ora a fé é a certeza
das coisas que se esperam e a convicção de fatos que se não vêem" (Hb
11.1), e: "as coisas que se não vêem são eternas" (II Co 4.18).
Creio que todos sabemos que Hb 11.1 é a única definição de fé na Bíblia. É
importante que compreendamos esta definição. O Novo Testamento de J. N. Darby
traduz bem este trecho: "A fé é a substancializaçao das coisas que
se esperam".
A palavra
"substancialização" é boa; significa tornar reais, na experiência, as
coisas que se esperam.
Como é que
"substancializamos" uma coisa? Fazemos isso todos os dias. Você
conhece a diferença entre substância e "substancializar"? Uma
substância é um objeto, uma coisa na minha frente. "Substancializar"
significa que tenho certo poder ou faculdade que torna aquela substância real
para mim. Por meio dos nossos sentidos, podemos tomar certas coisas do mundo,
da natureza, e transferi-las para o nosso conhecimento e percepção interna, de
modo que possamos apreciá-las. A vista e o ouvido, por exemplo, são duas das
faculdades que me permitem "substancializar" da luz e do som. Temos
cores: vermelho, amarelo, verde, azul e violeta, e estas cores são coisas
reais. Mas se eu fechar os olhos, a cor não continua sendo real para mim; é simplesmente
nada — para mim. Com a faculdade da vista, contudo, possuo o poder de
"substancializar", e assim, o amarelo torna-se amarelo para mim.
Se eu fosse cego, não poderia
distinguir a cor, e se me faltasse a faculdade de ouvir, não poderia apreciar a
música. A música e a cor, no entanto, são realidades que não são afetadas por
minha capacidade ou incapacidade de apreciá-las. Aqui estamos considerando
coisas que, embora não sejam vistas, são eternas e, portanto, reais.
Evidentemente, não é com nossos sentidos naturais que poderemos
"substancializar" as coisas divinas: há uma faculdade para "a
substancialização das coisas que se esperam", das coisas de Cristo — é a
fé. A fé faz com que as coisas que são reais, sejam reais na minha experiência.
A fé "substancializa" para mim as coisas de Cristo.
Centenas de milhares de pessoas lêem Rm 6.6: "Foi crucificado com Ele o nosso
velho homem". Para a fé, esta é a verdade; para a dúvida, ou para o mero
assentimento moral, sem a iluminação espiritual, não é verdade.
Lembremo-nos de que não
estamos lidando com promessas, e sim, com fatos. As promessas de Deus nos são
reveladas pelo Espírito, a fim de que nos apropriemos delas; os fatos, porém,
permanecem fatos, quer creiamos neles ou não. Se não crermos nos fatos da Cruz,
estes ainda permanecerão tão reais como sempre, mas não terão qualquer valor
para nós. A fé não é necessária para tornar estas coisas reais em si mesmas,
mas pode "substancializá-las" e torná-las reais em nossa experiência.
Qualquer coisa que contradiga
a verdade da Palavra de Deus deve ser considerada mentira do Diabo. Ao fato
maior declarado por Deus, deve-se curvar qualquer fato que pareça real ao
nosso sentimento. Passei por uma experiência que servirá para ilustrar este
princípio. Há alguns anos, encontrava-me doente. Passei seis noites com febre
alta, sem conseguir dormir. Finalmente, Deus me deu, através das Escrituras,
uma palavra pessoal de cura e, portanto esperava que se desvanecessem imediatamente
todos os sintomas da enfermidade.Ao invés disso, não conseguia conciliar o
sono, e me senti ainda mais perturbado; a temperatura aumentou, o pulso batia
mais rapidamente e a cabeça doía mais do que antes. O inimigo perguntava:
"Onde está a promessa de Deus". "Onde está a sua fé? Qual o
valor das suas orações"? Desta forma, senti-me tentado a levar o assunto
de novo a Deus em oração, mas fui repreendido por esta escritura que me veio à
mente: "A tua palavra é a verdade" (João 17.17). Se a palavra de Deus
é verdade, pensava, então o que significam estes sintomas? Devem ser todos eles
mentiras. Assim, declarei ao inimigo: "Esta falta de sono é uma mentira, esta
dor de cabeça é uma mentira, esta febre é uma mentira, esta pulsação elevada é
uma mentira. Em face do que Deus me disse, os presentes sintomas de
enfermidade são apenas as tuas mentiras, e a palavra de Deus, para mim, é a
verdade". Em cinco minutos, eu já estava dormindo, e, na manhã seguinte,
acordei perfeitamente são.
Ora, num caso pessoal como
este, há a possibilidade de eu me ter enganado a respeito do que Deus dissera,
mas jamais poderá haver qualquer dúvida quanto ao fato da Cruz. Devemos crer
em Deus, não importa quão convincentes pareçam os instrumentos de Satanás.
Um mentiroso, habilmente, não
só por palavras, mas também por gestos e atos, pode passar tão facilmente uma
moeda falsa, como dizer uma mentira. O Diabo é um mentiroso hábil e não podemos
esperar que ele, ao mentir, se limite ao emprego de palavras. Ele recorrerá a
sinais e sentimentos e experiências mentirosas nas suas tentativas de abalar a
nossa fé na Palavra de Deus. Permita-se-me esclarecer que não nego a realidade
da "carne". Ainda terei muito mais para dizer acerca deste assunto,
no nosso estudo. No momento, porém, estou tratando da nossa firmeza na posição
que nos foi revelada em Cristo. Logo que aceitamos que a nossa morte em Cristo
é uma realidade, Satanás envidará seus melhores esforços para demonstrar,
convincentemente, pela evidência da nossa experiência diária, que longe de
estarmos mortos, ainda estamos bem vivos. Assim temos que escolher:
acreditaremos na mentira de Satanás ou na verdade de Deus? Vamos ser governados
pelas aparências ou pelo que Deus diz?
Estou eu morto em Cristo,
quer o sinta, quer não. Como posso ter a certeza disso? Porque Cristo
"morreu; e desde que "um morreu por todos, logo todos morreram"
(II Co 5.14). Quer a minha experiência o comprove, quer pareça desaprová-lo, o fato
permanece inalterável. Enquanto eu permanecer naquele fato, Satanás não poderá
prevalecer contra mim. Lembremo-nos de que o seu ataque é sempre contra ã
nossa certeza. Se ele puder nos fazer duvidar da Palavra de Deus, então o seu
objetivo é alcançado, e ele nos mantém sob o seu poder; mas se descansamos,
inabaláveis, na certeza do fato declarado por Deus certos de que Sua obra e Sua
Palavra são imutáveis, poderemos rir de qualquer tática que Satanás adotar.
"Andamos por fé, e não
pelo que vemos" (II Co 5.7). Você provavelmente conhece a ilustração do
Fato, da Fé e da Experiência que caminhavam no topo de uma parede. O Fato
caminhava na frente, firmemente, não se voltando, nem para a esquerda nem para
a direita, e sem nunca olhar para trás. A Fé seguia-o e tudo andou bem enquanto
conservou os olhos postos no Fato; mas, logo que se preocupou com a
Experiência, voltando-se para observar o progresso desta, perdeu o equilíbrio e
caiu da parede para baixo, e a pobre da Experiência caiu com ela.
Toda a tentação consiste,
primariamente, em desviar os olhos do Senhor e deixar-se impressionar com as
aparências. A fé sempre encontra uma montanha, uma montanha de experiências
que parecem fazer da Palavra de Deus, uma montanha de aparente contradição no
plano de fatos tangíveis — dos fracassos nas atitudes, bem como no plano dos
sentimentos e sugestões — então, ou a Fé ou a montanha tem que sair do caminho.
Não podem permanecer ambas. Mas o que é triste é que, muitas vezes, a montanha
fica e a fé vai embora. Isto não deveria ser assim. Se recorrermos aos nossos
sentidos na busca da verdade, verificaremos que as mentiras de satanás muitas
vezes condizem com a nossa experiência; se, porém, nos recusamos a aceitar como
obrigatória qualquer coisa que contradiga a Palavra de Deus e mantiver-mos uma
atitude de fé exclusivamente nEle, verificaremos que as mentiras de Satanás
começam a dissolver-se e que a nossa experiência vai condizendo progressivamente
com a Palavra.
É a nossa ocupação com Cristo
que produz este resultado, porque significa que Ele Se torna progressivamente
real para nós, em situações reais. Em dada situação, vemos Cristo como real
justificação, real santidade, real vida ressurreta — para nós. O que vemos
objetivamente nEle, opera agora subjetivamente em nós — de maneira bem real no
entanto — para que Ele seja manifestado em nós, naquela situação. Esta é a
marca da maturidade. É isso que Paulo quer dizer na sua palavra aos Gálatas:
"De novo sofro as dores de parto, até ser Cristo formado em vós"
(4.19). A fé é a "substancialização" dos fatos de Deus, daquilo que é
eternamente verdade.
Permanecer nEle
Estamos familiarizados com as
palavras do Senhor Jesus: "Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós*'
(João 15.4). Elas nos lembram, mais uma vez, que jamais teremos que lutar para
entrar em Cristo. Não nos mandam alcançar aquela posição, porque já estamos
lá; a ordem é permanecermos onde já fomos colocados. Foi um ato do
próprio Deus que nos colocou em Cristo, e nós devemos nEle permanecer.
Além disso, este versículo
estabelece o princípio divino de que Deus fez a obra em Cristo e não em nós,
como indivíduos. A morte e a ressurreição do Filho de Deus, que nos incluíram
a todos, cumpriram-se, em primeiro lugar, plena e finalmente, à parte de nós.
É a história de Cristo que tem que se tornar a experiência do cristão, e não
temos experiência espiritual separadamente dEle. As Escrituras dizem que fomos
crucificados com ELE, que nELE fomos vivificados, ressuscitados e sentados por
Deus nos lugares celestiais, e que nELE estamos perfeitos (Rm 6.6; Ef 2.5,6; Cl
2.10). Não se trata precisamente de alguma coisa que ainda tenha que
efetuar-se em nós (embora exista este aspecto). É algo que já foi efetuado em
associação com Ele.
Verificamos, nas Escrituras,
que não existe experiência cristã como tal. O que Deus fez, no Seu
propósito gracioso, foi incluir-nos em Cristo. Ao tratar de Cristo, Deus tratou
do cristão; no Seu trato com a Cabeça, tratou também de todos os membros. É
inteiramente errado pensar que possamos experimentar algo da vida espiritual
meramente em nós mesmos e separadamente dEle. Deus não pretende que adquiramos
uma experiência exclusivamente pessoal e não quer realizar qualquer coisa
deste gênero em você e em mim. Toda a experiência espiritual do cristão tem
Cristo como sua fonte de realidade. O que chamamos a nossa
"experiência" é somente a nossa entrada na história e na experiência de
Cristo.
Seria ridículo se uma vara de
videira tentasse produzir uvas vermelhas, e outra, uvas verdes, e ainda outra,
uvas roxas; as varas não podem produzir uvas com características próprias,
independentemente da videira, pois é a videira que determina o caráter das
varas. Todavia, há crentes que buscam experiências, como experiências. Para
eles, a crucificação é uma coisa, a ressurreição é outra, a ascensão é outra, e
nunca se detêm para pensar que todas estas coisas estão relacionadas com uma
Pessoa. Somente na medida em que o Senhor abrir os nossos olhos para ver a
Pessoa, é que teremos qualquer experiência verdadeira. Experiência espiritual
verdadeira significa que descobrimos alguma coisa em Cristo e que entramos na
sua posse; qualquer experiência que não resulte de uma nova compreensão dEle
está condenada a se evaporar muito rapidamente. "Descobri aquilo em
Cristo; então, graças a Deus, pertence-me. Possuo-o, Senhor, porque está
em Ti". Que coisa maravilhosa conhecer as realidades de Cristo como o
fundamento da nossa experiência!
Assim, o princípio de Deus ao
nos fazer progredir experimentalmente, não consiste em nos dar alguma coisa, de
nos colocar em determinadas situações a fim de nos conceder algo que possamos
chamar de experiência nossa. Não se trata de Deus operar em nós de
tal maneira que possamos dizer: "Morri com Cristo no mês de março
passado", ou "ressuscitei da morte no dia primeiro de janeiro de
1937", ou, ainda, "quarta-feira pedi uma experiência definida e
alcancei-a". Não, esse não é o caminho. Eu não busco experiências em si
mesmas, neste presente ano da graça. Não se deve permitir que o tempo
domine o meu pensamento neste ponto.
Alguns perguntarão: e o que
dizer a respeito das crises por que tantos de nós temos passado? Não há dúvida
que alguns passaram por crises nas suas vidas. Por exemplo, George Muller
podia dizer, curvando-se até ao chão: "Houve um dia em que George Muller
morreu". O que diríamos a isto? Bem, não estou duvidando da realidade das
experiências espirituais pelas quais passamos, nem a importância das crises a
que Deus nos traz no nosso andar com Ele; pelo contrário, já acentuei a
necessidade que temos de ser absolutamente definidos acerca de tais crises em
nossas vidas. Mas, a verdade é que Deus não dá aos indivíduos experiências
individuais, e, sim, apenas uma participação naquilo que Deus já fez. É a
realização no tempo das coisas eternas. A história de Cristo
torna-se a nossa experiência e a nossa história espiritual; não temos uma
história separadamente da Sua. Todo o trabalho, a nosso respeito, não é
efetuado em nós, aqui, mas em Cristo. Ele não faz um trabalho separado, nos indivíduos,
à parte do que Ele fez no Calvário. Mesmo a vida eterna não nos é dada como
indivíduos: a vida está no Filho, e: "quem tem o Filho tem a vida".
Deus fez tudo no Seu Filho e incluiu-nos nEle; estamos incorporados em Cristo.
Ora, o que queremos frisar
com tudo isto é que há um valor prático muito real na posição de fé que se
expressa assim: "Deus me incluiu em Cristo e, portanto, tudo que é verdade
a respeito dEle também se aplica a mim. Permanecerei nEle. Satanás sempre
procura nos convencer, através de tentações, fracassos, sofrimentos, provações,
que estamos fora de Cristo. O nosso primeiro pensamento é que, se estivéssemos
em Cristo, não estaríamos neste estado e, portanto, julgando pelos nossos sentimentos
devemos estar fora dEle; é então que começamos a orar: "Senhor, coloca-me
em Cristo". Não! O mandamento de Deus é que "permaneçamos" em
Cristo, e é este o caminho do livramento. Mas por quê assim? Porque isso dá a
Deus a possibilidade de intervir nas nossa vidas e realizar a Sua obra em nós.
Assim, há lugar para a operação do Seu poder superior — o poder da
ressurreição (Rm 6.4,9,10) - de modo que os fatos de Cristo se tornam
progressivamente os fatos da nossa experiência diária e onde antes "o
pecado reinou" (Rm 5.21), fazemos agora, com regozijo, a descoberta de que
verdadeiramente já não servimos o pecado como escravos (Rm 6.6).
À medida que permanecemos
firmes no fundamento daquilo que Cristo é, achamos que tudo o que é verdade a
Seu respeito, se torna experimentalmente verdade em nós. Se,ao invés
disto,viermos para a base daquilo que somos, em nós próprios, acharemos que
tudo que é verdade a respeito da nossa velha natureza continua a ser verdade a
nosso respeito. Se pela fé nos conservamos firmes naquela posição, temos tudo;
se regressarmos a esta posição, nada temos. Assim é que tantas vezes vamos
procurar a morte do nosso eu no lugar errado. E em Cristo que a encontramos. Se
olhamos para dentro de nós mesmos, verificamos que estamos muito vivos para o
pecado; se olhamos além de nós mesmos, para o Senhor, Deus determina que nestas
condições, a morte se transforma em realidade, para que a "novidade de
vida" se manifeste em nós. Estamos assim "vivos para Deus" (Rm
6.4,11).
"Permanecei em mim e eu
em vós". Esta frase consiste em um mandamento ligado a sua promessa. Quer
dizer que o trabalho de Deus tem um aspecto objetivo e um subjetivo, e o lado
subjetivo depende do objetivo; o "Eu em vós" é o resultado da nossa
posição de permanência nEle. Devemos nos guardar de preocupação demasiada
quanto ao lado subjetivo das coisas, o que nos levaria a ficar voltados para
nós mesmos. Devemos permanecer naquilo que é objetivo — "permanecei em
mim" — e deixar que Deus tome conta do aspecto subjetivo. Ele Se
comprometeu a fazer isso.
Tenho ilustrado este
princípio por meio da luz elétrica. Estamos num quarto e já está escurecendo;
gostaríamos de ter luz para ler alguma coisa. Perto de nós, na mesa, há um
abajur. O que devemos fazer? Devemos olhar atentamente para ele para ver se a
luz se acende? Tornamos um pano para polir a lâmpada? Não, é só ir até o
interruptor e ligar a corrente. É só voltar a nossa atenção à fonte de força, e
tomando as devidas medidas ali, a luz se acende aqui.
Da mesma maneira, em nosso
andar com o Senhor, a nossa atenção deve fixar-se em Cristo. "Permanecei
em mim, e eu em vós" — esta é a ordem divina. A fé nos fatos objetivos os
torna subjetivamente verdadeiros para nós. É assim que o apóstolo Paulo
apresenta esta verdade: "Todos nós... contemplando... a glória do Senhor,
somos transformados na sua própria imagem" (II Co 3. 18). O mesmo
princípio domina na vida frutífera: "Quem permanece em mim, e Eu nele,
esse dá muito fruto" (Jo (João 15.5). Não tentamos produzir fruto, nem nos
concentramos no fruto produzido. A parte que nos toca é olharmos para Ele. Que
o façamos, porque Ele Se encarrega de cumprir a Sua palavra em nós.
Como é que permanecemos em
Cristo? "Vós sois de Deus em Cristo Jesus". Coube a Deus nos colocar
em Cristo, e Ele o fez. Agora, permaneçamos ali. Não voltemos para as
nossas próprias bases. Nunca olhemos para nós mesmos, como se não estivéssemos
em Cristo. Olhemos para Cristo, e vejamo-nos nEle. Permaneçamos nEle. Descansemos
na verdade de que Deus nos incluiu no Seu Filho, e vivamos na expectativa de
que Ele completará a Sua obra em nós. Cabe a Ele cumprir a gloriosa promessa
de que "o pecado não terá domínio sobre vós" (Rm 6.14).
5
A
linha divisória da Cruz
O reino deste mundo não é o
reino de Deus. Deus tinha no Seu coração um sistema cósmico — um universo da
Sua criação — que teria Cristo, o Seu Filho, por cabeça (Cl 1.16,17). Satanás,
porém, operando através da carne do homem, estabeleceu um sistema rival,
conhecido nas Escrituras como "este mundo" — sistema em que nós
estamos envolvidos e que ele próprio domina. Ele se tornou realmente "o
príncipe deste mundo" (João 12.31).
Desta forma, nas mãos de
Satanás, a primeira criação se transformou em velha criação, e Deus já não Se
preocupa primariamente com aquela, e, sim, com a segunda e nova. Está
introduzindo a nova criação, o novo reino e o mundo novo, e nada da velha
criação, do velho reino ou do mundo velho pode ser transferido a ela. Trata-se
agora de dois reinos rivais, e a qual deles damos a nossa lealdade.
O apóstolo Paulo,
naturalmente, não nos deixa em dúvidas sobre qual dos dois reinos realmente é
o nosso, dizendo-nos que Deus, pela redenção, "nos libertou do império das
trevas e nos transportou para o reino do Filho do Seu amor" (Cl 1.13).
Para nos transportar para o
Seu reino novo, Deus tem que fazer em nós algo novo. Precisa nos transformar em
novas criaturas, porque sem sermos criados de novo, não nos enquadraremos
jamais no reino novo. "O que é nascido da carne, é carne"; e,
"Carne e sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a
incorrupção" (João 3.6; I Co 15.50). A carne, por mais educada, culta e
melhorada que seja, continua sendo carne.
O que determina se estamos
aptos para o novo reino é a criação à qual pertencemos. Pertencemos à antiga
criação ou à nova? Nascemos da carne ou do Espírito? Em última análise, é nossa
origem que resolve se somos aptos para o novo reino. A questão não é de sermos
bons ou maus, é de pertencermos à carne ou ao Espírito. "O que é nascido
da carne, é carne", e nunca será outra coisa. O que pertence à
velha criação, nunca poderá ser transferido para a nova.
Uma vez que realmente
compreendemos o que Deus procura: algo inteiramente novo para Si, perceberemos
que nada há do mundo velho com que possamos contribuir para o novo. Deus nos
desejou para Si mesmo, mas não nos poderia levar assim como estávamos à nova
situação que nos oferece; assim, teve que acabar com nossa velha vida através
da Cruz de Cristo, e então, pela ressurreição de Cristo, nos oferecer uma vida
nova. "Se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já
passaram; eis que se fizeram novas" (II Co 5.17). Sendo agora novas
criaturas, com uma nova natureza e uma nova gama de faculdades, podemos entrar
no novo reino, e no novo mundo.
A Cruz foi o meio que Deus
empregou para pôr fim às "coisas antigas", pondo inteiramente à parte
o nosso "velho homem", e a ressurreição foi o meio que Ele empregou
para nos transmitir tudo que era necessário para a nossa vida naquele mundo
novo. "Para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória
do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida" (Rm 6.4).
O maior negativo do universo
é a Cruz, porque por meio dela, Deus riscou e destruiu tudo o que não era dEle
mesmo; o maior positivo no universo é a ressurreição, pois por meio dela Deus
trouxe à existência tudo o que Ele quer ter na nova esfera. Assim, a
ressurreição está no limiar da nova criação. É coisa abençoada ver que a Cruz
acaba com tudo aquilo que pertence ao primeiro sistema e que a ressurreição
introduz tudo o que pertence ao segundo. Tudo o que teve o seu começo antes da
ressurreição deve ser abolido. A ressurreição deve ser, antes de tudo, o novo
ponto de partida para Deus.
Temos, pois, dois mundos diante
de nós, o velho e o novo. No velho, Satanás tem domínio absoluto. Você pode ser
um homem bom na velha criação, mas, enquanto a ele pertencer, está sob a
sentença de morte, porque coisa alguma da velha criação pode ter acesso à nova.
A Cruz é a declaração de Deus de que tudo o que pertence à velha criação tem
que morrer. Nada do primeiro Adão pode passar para além da Cruz; tudo finda
ali. Quanto mais cedo percebemos isso, melhor, pois foi pela Cruz que Deus
traçou para nós um caminho de escape daquela velha criação. Deus reuniu, na
Pessoa do Seu Filho, tudo o que era de Adão, e crucificou-O; assim, tudo o que
era de Adão foi abolido por meio dEle. Depois, por assim dizer, Deus fez uma
proclamação por todo o universo, dizendo: "Pela Cruz, Eu afastei tudo
quanto não é de Mim; vós, que pertenceis à velha criação, estais todos
incluídos nisso; vós também fostes crucificados com Cristo!" Nenhum de nós
pode escapar àquele veredito.
Isso nos leva ao assunto do
batismo. "Ou, porventura, ignorais que todos os que fomos batizados em
Cristo Jesus, fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele
na morte pelo batismo" (Rm 6.3,4). Qual é o significado destas palavras?
O batismo, nas Escrituras,
está associado com a salvação. "Quem crer e for batizado será salvo"
(Mc 16.16). Não podemos falar, biblicamente, de "regeneração
batismal", mas podemos falar de "salvação batismal". O que é a
salvação? Relaciona-se não com os nossos pecados, nem com o poder do pecado,
mas com o Cosmos, ou sistema do universo. Estamos envolvidos no sistema
satânico. Ser salvo, significa evadir-se deste sistema para o sistema cósmico
de Deus.
Na Cruz de nosso Senhor Jesus
Cristo, segundo diz Paulo, "o mundo está crucificado para mim, e eu para o
mundo" (Gl 6.14). Esta é a ilustração desenvolvida por Pedro quando
escreve acerca das oito almas que foram "salvas pela água" (I Pe
3.20). Entrando na arca, Noé e os que estavam com ele marcharam, pela fé, para
fora daquele mundo velho e corrupto, com destino a um mundo novo. Não se
tratava de eles, pessoalmente, não se terem afogado tanto quanto de se
encontrarem fora daquele sistema corrupto. Isto é salvação.
Depois, Pedro prossegue:
"a qual, figurando o batismo agora também vos salva" (v.21). Noutras
palavras, aquele aspecto da Cruz que é figurado no batismo, nos liberta deste
mundo mau e, pelo nosso batismo na água, confirmamos isto. É batismo "na
Sua morte", pondo fim a uma criação; mas também é batismo "em Jesus
Cristo", que visa uma nova criação (Rm 6.3). Afundamo-nos na água, e o
nosso mundo, figurativamente, se afunda conosco. Emergimos em Cristo, mas o
nosso mundo fica afundado.
"Crê no Senhor Jesus, e
serás salvo", disse Paulo em Filipos e "lhe pregaram a palavra de
Deus, e a todos os da sua casa". A seguir foi ele batizado, e todos os s,
., (At 16.31-34). Ao fazê-lo, ele e os que estavam com ele testificaram,
perante Deus, perante o povo e os poderes espirituais, que se encontravam
realmente salvos de um mundo sob julgamento. Como resultado, segundo lemos,
"com todos os seus, manifestava grande alegria por terem crido em
Deus".
É claro, pois, que o batismo
não é mera questão de uma taça de água, nem mesmo de um batistério de água,
sendo algo muito maior, porque se relaciona tanto com a morte como com a
ressurreição de nosso Senhor; e tem em vista dois mundos.
A sepultura significa o fim
Qual é a minha resposta ao
veredito de Deus sobre a velha criação? Respondo, pedindo o batismo. Por quê?
Em Rm 6.4, Paulo explica que o batismo significa sepultura: "Fomos
sepultados com Ele na morte pelo batismo". O batismo está, evidentemente,
relacionado tanto com a morte como com a ressurreição: é sepultura. Mas quem
está preparado para a sepultura? Somente os mortos. De modo que, se eu peço o
batismo, proclamo--me morto e apto somente para o túmulo.
Alguns têm sido ensinados a
olhar para a sepultura como um meio de entrar na morte; tentam morrer,
fazendo-se sepultar. Quero afirmar enfaticamente que, a não ser que os nossos
olhos tenham sido abertos por Deus, para ver que morremos em Cristo e que fomos
sepultados com Ele, não temos o direito de ser batizados. A razão de entrarmos
na água é o nosso reconhecimento que à vista de Deus, já morremos. É disto que testificamos.
A pergunta de Deus é clara e simples: "Cristo morreu e Eu incluí você
nEle; qual a sua resposta? " Respondo: "Creio, Senhor, que Tu
operaste a crucificação, e digo 'sim' à morte e à sepultura a que Tu me
entregaste". Ele entregou-me à morte e à sepultura; ao pedir o batismo,
dou meu assentimento público a este fato.
Na China, certa mulher perdeu
o marido mas, sofrendo um desarranjo mental provocado pela perda, recusou-se
totalmente a permitir que ele fosse sepultado. Dia após dia, durante uma
quinzena, ele jazeu em casa. "Não" dizia ela, "ele não está
morto; falo com ele todas as noites". Não queria que o marido fosse
sepultado porque a coitada não acreditava que estivesse morto. Quando é que
estamos prontos a sepultar os nossos queridos? Apenas quando estamos
absolutamente certos de que eles faleceram. Enquanto restar a mais tênue
esperança de que eles estejam vivos, nunca quereremos sepultá-los. Quando é,
pois, que peço o batismo? Quando percebo que o caminho de Deus é perfeito e
que mereço morrer, e quando estou verdadeiramente persuadido de que, perante
Deus, estou realmente morto. Digo então: "Graças a Deus que estou morto!
Senhor, Tu me mataste; agora sepulta-me!"
Há um mundo velho e um mundo
novo, e entre os dois há um túmulo. Deus já me crucificou, mas eu tenho que
consentir em ser consignado ao túmulo. O meu batismo confirma a sentença de
Deus, pronunciada sobre mim na Cruz do Seu Filho. Declara que eu fui cortado do
velho mundo e que pertenço agora ao novo. Assim, o batismo não é coisa de
somenos importância. Significa para mim um corte consciente e definido com o
velho modo de vida. É este o significado de Rm 6.2: "Como viveremos ainda
no pecado, nós que para ele morremos? " Paulo diz, com efeito: "se
vós quisésseis continuar no mundo velho, por que serieis então batizados? Nunca
deveríeis ter sido batizados se tencionáveis continuar a viver no velho
sistema". Uma vez que percebemos isto, desimpedimos os alicerces para a
nova criação, pelo nosso assentimento à sepultura da velha.
Em Rm 6.5, escrevendo ainda
àqueles que foram batizados (v.3), Paulo fala de estarmos "unidos com Ele
na semelhança da Sua morte", porque pelo batismo reconhecemos, em figura,
que Deus operou uma união íntima entre nós próprios e Cristo, quanto à morte e
à ressurreição. Certo dia, procurava eu dar relevo a esta verdade perante um
irmão. Tomávamos chá juntos, e tomei um cubo de açúcar e o coloquei na minha
xícara de chá. Dois minutos depois perguntei: "Pode me dizer agora onde
está o açúcar e onde se encontra o chá?" "Não", disse ele,
"o irmão juntou-os e um se perdeu no outro; não podem agora ser
separados". Era uma ilustração simples, mas auxiliou a perceber a
intimidade e a finalidade da nossa união com Cristo na morte. Foi Deus que nos
incluiu nEle, e os atos de Deus não podem ser anulados.
Qual é o significado real
desta união? É que na Cruz fomos "batizados" na morte histórica de
Cristo, pelo que a Sua morte tornou-se a nossa. As duas mortes então se
identificaram tão intimamente que é impossível traçar uma divisão entre elas. É
a este "batismo" histórico — a esta união com Cristo, operada por
Deus — que damos o nosso assentimento quando nos adiantamos para sermos imersos
na água. O nosso testemunho público, no batismo, hoje é o nosso reconhecimento
de que a morte de Cristo, há dois mil anos, foi uma morte que poderosamente
incluiu a todos — suficientemente poderosa e inclusiva para absorver a tudo, e
para pôr termo a tudo em nós que não é da parte de Deus.
Ressurreição
para novidade de vida
"Se fomos unidos
com ele na semelhança da sua morte, certamente o seremos também na semelhança
da sua ressurreição" (Rm 6.5).
Em relação à ressurreição, a
figura é diferente porque algo novo é introduzido. Sou "batizado na Sua
morte", mas não entro na Sua ressurreição exatamente assim, porque,
louvado seja o Senhor, a Sua ressurreição entra em mim, comunicando-me vida
nova. Na morte do Senhor ressalta-se somente "eu em Cristo". Com a
ressurreição, embora a mesma coisa seja verdade, há uma nova ênfase sobre
"Cristo em mim". Como é possível que Cristo me comunique a Sua vida
ressurreta? Como recebo eu esta vida nova? Paulo, com as suas palavras citadas
acima, sugere uma excelente ilustração, porque a palavra "unidos"
(ou: "plantados juntamente") pode ter no Grego o sentido de
"enxertado", o que nos dá uma figura muito bela da vida de Cristo
comunicada a nós através da ressurreição.
Como pode uma árvore produzir
fruto de outra? Como pode uma árvore inferior produzir bom fruto? Somente por
meio do enxerto. Somente se nela implantarmos a vida de uma árvore boa. Mas,
se um homem pode enxertar um ramo de uma árvore noutra, não pode Deus tomar da
vida de Seu Filho, e, por assim dizer, enxertá-la em nós?
Certa mulher chinesa queimou
o braço gravemente e foi levada ao hospital. A fim de evitar sérias contrações
devido à cicatrização, achou-se necessário enxertar um pouco de pele nova na
área lesada, mas o médico cirurgião tentou em vão enxertar um pedaço da pele
da própria mulher no braço. Devido à sua idade e a uma alimentação
deficiente, o enxerto da pele era demasiado pobre e não "pegava".
Então, uma enfermeira estrangeira ofereceu um pedaço de pele e a operação foi
feita com êxito. A pele nova uniu-se perfeitamente com a velha e a mulher saiu
do hospital com o braço perfeitamente curado; mas ficara ali um remendo de
pele branca e estrangeira no seu braço amarelo, para contar aquele incidente
do passado.
Se um cirurgião humano pode
tomar um pedaço da pele de uma pessoa e enxertá-lo noutra, não pode o Divino
Cirurgião implantar a vida de Seu Filho em mim? Não sei como é feito. "O
vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde
vai; assim é todo o que é nascido do Espírito" (João 3.8). Não sabemos
explicar como Deus realizou a Sua obra em nós, só sabemos que a fez. Nada
podemos nem precisamos fazer para realizá-la porque, pela ressurreição, Deus já
a completou. Deus fez tudo. Há somente uma vida frutífera no mundo, e esta
vida tem sido enxertada em milhões de outras vidas. É a isto que chamamos
"novo nascimento". O novo nascimento é quando recebo uma vida que eu
não possuía antes. Não se trata de a minha vida ter sido, de algum modo,
modificada, e, sim, que outra vida, uma vida inteiramente nova, inteiramente
divina, veio a ser a minha vida.
Deus cortou e excluiu a velha
criação, pela Cruz do Seu Filho, a fim de produzir uma nova criação, em Cristo,
pela Ressurreição. Encerrou a porta para o velho reino das trevas, e me
transferiu para o reino do Seu Filho Amado. Eu me glorio nisso - que, pela
Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, aquele velho mundo "está crucificado
para mim e eu para o mundo" (Gl 6.14). O meu batismo é o meu testemunho
público desse fato. Por meio dele, assim como pelo meu testemunho oral, faço a
minha confissão para a salvação.
6
A
senda do progresso:
oferecendo-nos
a Deus
O nosso estudo trouxe-nos a
uma posição em que podemos considerar a verdadeira natureza da consagração.
Temos agora perante nós a segunda metade de Romanos 6, desde o versículo 12 até
ao fim. Em Rm 6.12,13 lemos: "Não reine, portanto, o pecado em vosso
corpo mortal, de maneira que obedeçais às suas paixões; nem ofereçais cada um
os membros do seu corpo ao pecado como instrumentos de iniqüidade; mas
oferecei-vos a Deus como ressurretos dentre os mortos, e os vossos membros a
Deus como instrumentos de justiça". A palavra que aqui exprime ação é
"oferecer-se", que ocorre cinco vezes nos vv. 13,16e 19.A palavra
implica em consagração, mas não no sentido em que tantas vezes a entendemos.
Não se trata da consagração do nosso "velho homem" com os seus
instintos e recursos — a nossa sabedoria, força e outros dons naturais — ao
Senhor para Ele usar.
Isto fica claro a partir do
v. 13. Nota-se, naquele versículo, que a condição é "como ressurretos
dentre os mortos". Isto define o ponto em que começa a consagração. Paulo
diz: "Oferecei-vos a Deus como ressurretos dentre os mortos". O que
aqui se refere não é a consagração de qualquer coisa pertencente à velha
criação, mas somente daquilo que passou através da morte para a ressurreição. A
atitude de "oferecer", de que se fala aqui, é o resultado de eu saber
que o meu velho homem foi crucificado. Saber, considerar-se, oferecer-se a
Deus: esta é a ordem divina.
Quando eu realmente sei que
fui crucificado com Ele, então
espontaneamente considero-me morto (vv. 6 e 11) e quando sei que ressuscitei
com Ele de entre os mortos, então, considero-me "vivo para Deus em Cristo
Jesus" (vv. 9 e 11), pois tanto o aspecto da Cruz denominado
"morte", como o denominado "ressurreição" têm que ser
aceitos pela fé. Quando chego a este ponto, segue-se que me dou a Ele. Na
ressurreição, Ele é a fonte da minha vida — realmente Ele é a minha
vida; de modo que não posso deixar de oferecer tudo a Ele, pois tudo é dEle e
não meu. Mas, sem passar pela morte, nada tenho para consagrar, nada há de
aceitável a Deus, pois já condenou, na Cruz, tudo quanto é da velha criação. A
morte acabou com tudo o que não pode ser consagrado a Ele, e somente a
ressurreição torna possível qualquer consagração. Apresentar-me a Deus
significa que, agora e daqui em diante, considero a minha vida como pertencente
ao Senhor.
O terceiro passo:
"Oferecei-vos..."
Observemos que este
"apresentar-se" se refere aos membros do meu corpo — aquele corpo
que, como já vimos, está agora desempregado em relação ao pecado.
"Oferecei-vos... e os vossos membros" (Rm 6.13,19). Deus quer que eu
considere agora todos os meus membros, todas as minhas faculdades, como
pertencendo-Lhe inteiramente.
É uma coisa grandiosa quando
descubro que não me pertenço mais, mas que sou dEle. Se os dez cruzeiros no meu
bolso me pertencem, tenho plena autoridade sobre eles. Mas se eles pertencem a
outra pessoa, que os confiou a mim, não posso comprar com eles o que quiser,
nem ouso perdê-los. A vida cristã real começa com o conhecimento desta
verdade. Quantos de nós sabemos que, porque Cristo ressuscitou, estamos
"vivos para Deus" e não para nós próprios? Quantos não se
atrevem a usar o seu tempo, ou dinheiro ou talento segundo sua própria vontade,
porque compreendem que eles são do Senhor e não de si mesmos? Quantos de nós
temos um sentimento tão forte de que pertencemos a outro, que não ousamos
desperdiçar um só cruzeiro do nosso dinheiro ou uma hora do nosso tempo, ou
qualquer dos nossos poderes mentais ou físicos?
Certa ocasião, um irmão
chinês viajava de trem, havendo no vagão onde se encontrava três pessoas não
crentes que queriam jogar baralho para passar o tempo. Faltando um quarto
parceiro para completar o jogo, convidaram este irmão a fazer parte da partida.
"Lamento decepcioná-los", disse ele, "mas não posso participar
do jogo, porque não trouxe comigo as minhas mãos". Atônitos, olharam para
ele e disseram: "Que é que você quer dizer?". "Este par de mãos
não me pertence" — disse ele, passando então a explicar a transferência
de propriedade que tivera lugar na sua vida. Aquele irmão considerava os
membros do seu corpo como pertencentes inteiramente ao Senhor. A verdadeira
santidade é esta. Paulo diz: "Oferecei agora os vossos membros para servirem
à justiça para a santificação" (Rm 6.19). Façamos disto um ato definido.
"Oferecei-vos a Deus".
Separados para o Senhor
O que é a santidade? Muitas
pessoas pensam que nos tornamos santos pela extirpação de alguma coisa má dentro
de nós. Não, tornamo-nos santos desde que sejamos separados para Deus. Nos
tempos do Antigo Testamento o homem escolhido para ser inteiramente de Deus era
publicamente ungido com azeite, e dizia-se então estar "santificado".
Daí em diante era considerado como posto à parte para Deus. De igual modo, os
animais e até as coisas - um cordeiro ou o ouro do templo — podiam ser
santificados, não pela extirpação de alguma coisa má neles, mas sendo assim
reservado exclusivamente para o Senhor. "A santidade", no sentido
hebraico, significava, pois, "posto à parte", e toda verdadeira
santidade é santidade ao Senhor (Êx 28.36). Dou-me inteiramente a Cristo: isto
é santidade.
Oferecer-me a Deus implica o
reconhecimento de que sou inteiramente dEle. Este ato de me dar ao Senhor é uma
coisa definida, tão definida como o reconhecimento. Deve haver um dia, na minha
vida, em que passo das minhas próprias mãos para as dEle, e desse dia em
diante pertenço-Lhe e não mais a mim mesmo. Isso não significa que eu me
consagro para ser pregador ou missionário. Infelizmente, muitos são
missionários, não porque, no sentido que estamos considerando, verdadeiramente
se tenham consagrado a Deus, mas porque não se consagraram a Ele.
"Consagraram", como diriam, algo inteiramente diferente: as suas
faculdades naturais, não crucificadas, para realizar o Seu trabalho; esta,
porém, não é a verdadeira consagração. Então a que devemos nós ser consagrados?
Não ao trabalho cristão, e, sim, à vontade de Deus para ser e fazer o que
Ele desejar.
Davi tinha muitos homens
poderosos. Alguns eram generais e outros, porteiros, conforme o Rei lhes
designava as suas tarefas. Devemos estar prontos a ser quer generais, quer
porteiros, designados às nossas responsabilidades exatamente como Deus quer e
não como nós escolhemos. Se você é crente, então Deus já tem um caminho
preparado para você — uma "carreira" como disse Paulo em II Tm 4.7.
Não só a vereda de Paulo como também a carreira de todo crente foi claramente
traçada por Deus, e é da máxima importância que cada um conheça e ande no
caminho designado por Deus. "Senhor, dou-me a Ti com este desejo somente,
conhecer e andar no caminho que Tu me ordenaste". Essa é a verdadeira
entrega. Se no fim da vida pudermos dizer como Paulo: "Acabei a
carreira", então seremos verdadeiramente abençoados. Não há nada mais
trágico do que chegar ao fim da vida e sabermos que a passamos andando pelo
caminho errado. Temos apenas uma vida para viver aqui e somos livres para fazer
com ela o que nos agradar, mas, se buscarmos o nosso próprio prazer na vida,
nunca glorificaremos a Deus. Ouvi certa vez um crente devoto dizer: "Nada
quero para mim; quero tudo para Deus". Você deseja alguma coisa
separadamente de Deus, ou todo o seu desejo se centraliza na vontade dEle?
Pode verdadeiramente dizer que a vontade de Deus é "boa e agradável e perfeita"
para você? (Rm 12.2).
São as nossas vontades que
estão em causa aqui. Aquela minha forte e dogmática vontade própria tem que ir
à Cruz, e eu devo me dar inteiramente ao Senhor. Não podemos esperar que um
alfaiate nos faça um terno se não lhe dermos o tecido, nem que um construtor
edifique uma casa quando não pusermos ao seu dispor o material necessário; e,
da mesma forma, não podemos esperar que o Senhor viva a Sua vida em nós, se não
Lhe dermos as nossas vidas para que Ele manifeste nelas a Sua vida. Sem reservas,
sem controvérsia, devemos dar-nos a Ele, para fazer conosco o que Lhe agradar.
"Oferecei-vos a Deus" (Rm6.13).
Servo ou escravo?
Se nos dermos a Deus, sem
reservas, muitos ajustamentos talvez sejam necessários: na família, nos
negócios, na vida da Igreja, ou em nossas opiniões pessoais. Deus não deixará
sobrar nada de nós mesmos. O Seu dedo tocará, uma por uma, todas as coisas que
não são dEle, e Ele dirá: "Isto tem que desaparecer". Você está
pronto? É loucura resistir a Deus, e é sempre prudente e sábio submeter-nos a
Ele. Admitamos que muitos de nós ainda temos controvérsia com o Senhor. Ele
deseja uma coisa da nossa parte, enquanto nós desejamos outra. Não ousamos
considerar muitas coisas, nem orar a respeito delas, nem mesmo pensar nelas,
por medo de perdermos a nossa paz. Podemos fugir assim do problema, mas isso
nos colocaria fora da vontade de Deus. É sempre fácil nos afastarmos da Sua
vontade, mas é uma bênção nos entregarmos a Ele e deixá-Lo realizar em nós o
Seu propósito.
Como é bom ter a consciência
de que pertencemos ao Senhor e de que não somos de nós mesmos! Não há coisa
alguma mais preciosa no mundo. É isso que traz a consciência da Sua presença
contínua, e a razão é óbvia.
Eu devo ter o sentimento de
que Deus me possui antes de poder ter o sentimento da Sua presença em mim.
Desde que a Sua soberania seja estabelecida, então não ouso fazer coisa alguma
no meu próprio interesse, pois sou Sua propriedade exclusiva. "Não sabeis
que daquele a quem vos ofereceis como servos para obediência sois servos?
" (Rm 6.16). A palavra aqui traduzida por "servo", significa
realmente escravo. Esta palavra é usada várias vezes na segunda metade de
Romanos 6. Qual é a diferença entre um
servo e um escravo? Um servo pode servir o outra pessoa mas
não se torna propriedade sua. Se gostar do seu senhor, pode servi-lo, mas se
não gostar dele, pode notificá-lo que quer deixar o serviço, e buscar outro
senhor. O mesmo não acontece com o escravo. Ele não é © apenas empregado de
outra pessoa, mas também sua possessão. Como me tornei eu escravo do Senhor?
Ele, por Seu lado, comprou-me, e eu, por meu lado, ofereci-me a Ele. Por
direito de redenção, sou propriedade de Deus. Mas, para que eu seja Seu escravo
devo voluntariamente me dar a Ele, pois Ele nunca me obrigará a fazê-lo. O
problema de muitos cristãos hoje é que têm idéia insuficiente quanto ao que
Deus pede deles. Quão facilmente dizem: "Senhor, estou pronto para
tudo". Você sabe o que Deus pede da sua vida? Há idéias acalentadas,
vontades fortes, relações preciosas, trabalhos prediletos, que têm que
desaparecer da nossa vida; de modo que não devemos nos oferecer a Deus antes de
estarmos prontos a isto. Deus nos levará a sério.
Quando o rapaz galileu trouxe
o pão ao Senhor, o que fez Ele? Quebrou o pão. Deus sempre quebra aquilo que
Lhe é oferecido, mas após quebrá-lo, abençoa-o e usa-o para suprir as
necessidade dos outros. Após nos darmos ao Senhor, Ele começa a quebrar o que
Lhe foi oferecido. Tudo parece ir mal conosco, e começamos a protestar e a nos
queixar dos caminhos de Deus. Mas parar neste ponto equivale a ser um vaso
quebrado — sem préstimo para o mundo, porque fomos demasiado longe para que
tenhamos utilidade para o mundo, e sem préstimo para Deus, porque não fomos
suficientemente longe para que Ele pudesse usar-nos. Ficamos desengrenados com
o mundo e temos uma controvérsia com Deus. Esta é a tragédia de muitos
cristãos.
A minha entrega ao Senhor
deve ser um ato inicial e fundamental. Depois, dia a dia, devo prosseguir,
dando-me a Ele, sem me queixar do uso que Ele faz de mim, mas aceitando, com
grato louvor, mesmo aquilo contra c o qual a carne se revolta.
Sou do Senhor e agora não
mais me considero propriedade minha, mas reconheço em tudo a Sua soberania e
autoridade. Esta é a atitude que Deus requer, e mantê-la é verdadeira
consagração. Não me consagro para ser missionário ou pregador; consagro-me a
Deus para fazer a Sua vontade, onde estiver, quer seja na escola, no escritório,
na oficina ou na cozinha, considerando que tudo o que Ele ordena é o melhor
para mim, pois somente o que é bom pode advir para aqueles que são inteiramente
Seus. Permita Deus que estejamos sempre possuídos da consciência de que não
somos de nós mesmos!
7
O
propósito eterno
Já falamos da necessidade da
revelação, da fé e da consagração para vivermos a vida cristã normal, mas nunca
entenderemos claramente por que são necessárias, se não tivermos em mente o
alvo que Deus tem em vista. Qual é o grande alvo divino, o propósito de Deus na
criação e na redenção? Pode se resumir em duas frases, uma de cada seção de
Romanos já mencionada. É: "a glória de Deus" (Rm 3.23), e "a
glória dos filhos de Deus" (Rm 8.21).
Em Rm 3.23, lemos:
"Todos pecaram e carecem da t glória de Deus". O propósito de
Deus para o homem era a glória, mas o pecado frustrou esse propósito, fazendo
com que o homem se desviasse deste alvo da glória de Deus. Quando pensamos no
pecado, instintivamente pensamos no julgamento que ele acarreta; invariavelmente
associamo-lo com a condenação e o Inferno. O pensamento do homem é sempre a
respeito da punição que lhe sobrevirá se pecar, mas o pensamento de Deus gira em
torno da glória que o homem perde se pecar. O resultado do pecado é que
perdemos o direito à glória de Deus; o resultado da redenção é que somos
qualificados de novo para a glória. O propósito de Deus na redenção e é glória,
glória, glória.
Primogênito
entre muitos irmãos
Esta consideração nos leva
adiante, para o capítulo 8 de Romanos, onde o tema se desenvolve nos vv. 16 a
18, e de novo nos vv. 29 e 30. Paulo diz: "Somos filhos de Deus. E, se
somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com
Cristo; se com ele sofrermos, para que também com ele sejamos glorificados.
Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não são
para comparar com a glória por £ vir a ser revelada em nós" (Rm
8.16-18); e ainda, "Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou
para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito
entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que
chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também
glorificou" (Rm 8.29,30).
Qual era o objetivo de Deus?
Era que o Seu Filho Jesus Cristo pudesse ser o primogênito entre muitos irmãos
que seriam todos transformados à Sua imagem. Como realizou Deus esse objetivo?
"Aos que justificou, a esses também glorificou". Então, o propósito
de Deus na criação e na redenção foi fazer de Cristo o primogênito entre muitos
filhos glorificados.
Em João 1.14, aprendemos que
o Senhor Jesus era o "unigênito Filho de Deus: "E o Verbo se fez
carne e habitou entre nós, e vimos a Sua glória, glória como do unigênito do
Pai". Isto significa que Deus não tinha outro filho senão Este. Ele estava
com o Pai desde toda a eternidade. Mas aprendemos que Deus não Se satisfazia
em que Cristo permanecesse como o Filho Unigênito. Desejava também que Ele Se
tornasse o Seu primogênito. Como podia um filho unigênito vir a ser o
primogênito?
E tendo o pai, mais filhos; o
primeiro filho que você tiver, será seu unigênito, mas se tiver outros, este se
torna o primogênito.
O propósito divino na criação
e na redenção foi que Deus tivesse muitos filhos. Ele nos desejava, e não Se
satisfazia sem nós. Há algum tempo, visitei o Sr. George Cutting, autor do
famoso folheto "Segurança, Certeza e Gozo". Quando fui levado
à presença deste velho crente, de noventa e três anos, ele tomou a minha mão
nas suas, e, de maneira calma e ponderada, disse: "Irmão, sabe, eu não
posso passar sem Ele, e, sabe, Ele não pode passar sem mim". Embora
estivesse com ele por mais de uma hora, a sua idade avançada e a sua fraqueza
física tornaram impossível manter qualquer conversa, mas o que ficou gravado
na minha memória, desta entrevista, foi a sua freqüente repetição destas duas
frases: "Irmão, sabe, eu não posso passar sem Ele, e, sabe, Ele não
pode passar sem mim".
Ao ler a história do filho
pródigo, muitas pessoas se impressionam com as tribulações que lhe sobrevieram,
pensando no que ele passou de desagradável. Mas não é e essa a lição da
parábola, cujo coração é: "Meu filho estava perdido e foi achado". A
questão não é o que o filho sofre, mas o que o pai perde. É Ele o sofredor; é
Ele quem perde. Uma ovelha se perde — de quem é a perda? Do pastor. Perde-se
uma moeda — de quem é a perda? Da mulher. Perde-se um filho — de quem é a
perda? Do pai. É esta a lição de Lucas capítulo 15.
O Senhor Jesus era o Filho
Unigênito: não tinha irmãos. O Pai, porém, enviou o Filho, a fim de que o
Unigênito pudesse também ser o Primogênito, e o Filho amado tivesse muitos
irmãos. Nisto reside toda a história da Encarnação e da Cruz; e temos aqui,
finalmente, o cumprimento do propósito de Deus: "Conduzindo « muitos
filhos à glória" (Hb 2.10).
Lemos em Rm 8.29: "muitos
irmãos", e em Hb 10.10: "muitos filhos". Do ponto de vista do
Senhor Jesus Cristo, trata-se de "irmãos"; do ponto de vista de Deus
Pai, trata-se de "filhos". Ambas as palavras, neste contexto, expressam
a idéia de maturidade. Deus procura filhos adultos, e mais do que isso, não
deseja que vivam num celeiro, numa garagem ou no campo: quer levá-los para o a
Seu lar. Deseja que compartilhem da Sua glória. É esta a explicação de Rm 8.30:
"Aos que justificou, a estes também glorificou". A filiação — a expressão
plena do Seu Filho — é o propósito de Deus nos "muitos filhos". Como
poderia Ele realizar isto? Justificando-os e depois, glorificando-os. Deus não
Se deterá aquém daquele alvo.
Ele Se propõe a ter filhos
com Ele na glória, filhos perfeitos e responsáveis. Providenciou para que todo
o Céu fosse habitado com filhos glorificados. Foi este o Seu propósito na
redenção.
O grão de
trigo
Como foi efetuada a obra de
Deus em tornar Seu Filho Unigênito em Primogênito? A explicação se acha em
João 12.24: "Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo, caindo
em terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, produz muito fruto".
Este grão era o Senhor Jesus, o único que Deus tinha no universo; não tinha
segundo grão. Deus colocou este único grão na terra, onde morreu, e, na
ressurreição, o grão unigênito se transformou em grão primogênito, porque dele
se derivaram muitos grãos.
Em relação à Sua divindade, o
Senhor Jesus permanece único como "unigênito Filho de Deus". Todavia,
há um sentido em que, da ressurreição em diante, e por toda a eternidade, é
também o primogênito, e a Sua vida, a partir de então, se acha em muitos
irmãos. Assim, nós, que somos nascidos do Espírito, somos feitos
"co-participantes da natureza divina" (II Pe 1.4), não por nós mesmos,
e, sim, em dependência de Deus e por virtude e de estarmos "em
Cristo". Recebemos "o espírito de adoção, baseados no qual clamamos:
Aba, Pai. O próprio Espírito testifica com o nosso Espírito que somos filhos de
Deus" (Rm 8.15, 16). Foi por meio da Encarnação e da Cruz que o Senhor
Jesus o tornou possível. Nisto se satisfez o coração de Deus, o Pai, porque
pela obediência do Filho até à morte, alcançou os Seus muitos filhos.
O primeiro e o vigésimo
capítulos de João são muito preciosos a este respeito. No princípio do seu
Evangelho, João nos diz que Jesus era o "unigênito Filho do Pai". No
fim do Evangelho, diz que o Senhor Jesus, depois de ter morrido e ressuscitado,
disse a Maria Madalena: "Vai ter com meus irmãos, e dize-lhes que Eu subo
para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus" (João 20.17). Até aqui,
neste Evangelho, o Senhor falou muitas vezes de "o Pai" ou de
"meu Pai". Agora, na ressurreição, acrescenta: "...e vosso
Pai". É o Filho mais velho, o Primogênito, que fala. Pela Sua morte e
ressurreição, muitos irmãos foram trazidos para a família de Deus, e, portanto,
no mesmo versículo, Ele os chama: "Meus irmãos". "Ele não se
envergonha de lhes chamar irmãos" (Hb. 2.11).
A escolha que Adão tinha que fazer
Deus plantou grande número de
árvores no Jardim no Éden, mas, "no meio do jardim" — isto é, num lugar
de especial proeminência, plantou duas árvores: a árvore da vida, e a árvore do
conhecimento do bem e do mal. Adão foi criado inocente: não tinha o conhecimento
do bem, nem do mal. E Deus o colocou no Jardim, dizendo com efeito: "Ora,
o Jardim está cheio de árvores repletas de frutos, e podes comer livremente do
fruto de todas as árvores, mas, no meio do Jardim, há uma árvore chamada 'a
árvore do conhecimento do bem e do mal' — não deves comer dela porque, no dia
em que o fizeres, certamente morrerás. Mas, lembra-te, o nome da outra
árvore, ao pé dessa, é 'árvore da Vida'."
Qual é, pois, o significado
destas duas árvores? Adão, por assim dizer, foi criado moralmente neutro — nem
pecador nem santo, mas inocente — e Deus colocou estas duas árvores no Jardim
para que ele pudesse pôr em prática a faculdade de livre escolha de que era
dotado. Podia escolher a árvore da vida, ou escolher a árvore do conhecimento
do bem e do mal.
Ora, o conhecimento do bem e
do mal, embora a Adão tivesse sido proibido, não é mau em si mesmo. Sem ele,
Adão está limitado e não pode, por si mesmo, decidir em questões de
ordem moral. O julgamento do que é certo e bom não lhe pertence, e, sim, a
Deus, e o único recurso de Adão, quando tem que encarar qualquer problema, é
remetê-lo a Deus. Assim, há no Jardim uma vida que depende totalmente de Deus.
Estas duas árvores representam, portanto, dois princípios profundos; simbolizam
dois planos de vida, o divino e o humano. A "árvore da vida" é o
próprio Deus, porque Deus é a vida, a mais elevada expressão da vida, bem como
a fonte e o alvo da vida. O que representa o fruto? É nosso Senhor Jesus
Cristo. Não podemos comer a árvore, mas podemos comer o seu fruto. Ninguém é capaz
de receber Deus, como Deus, mas podemos receber o Senhor Jesus Cristo. O fruto
é a parte comestível, a parte da árvore
que se pode receber. Podemos assim dizer, com a devida
reverência, que o Senhor Jesus Cristo é realmente Deus, em forma recebível:
Deus, em Cristo, pode ser recebido por nós.
Se Adão tomasse da árvore da
vida, participaria da vida de Deus e assim se tornaria um "filho" de
Deus, no sentido de ter em si mesmo vida derivada de Deus.
Teríamos então a vida de Deus
em união com o homem: uma raça de homens tendo em si a vida de Deus e vivendo
em constante dependência de Deus para a manifestação dessa vida. Se, por
outro lado, Adão se voltasse na direção contrária e tomasse do fruto da árvore
do conhecimento do bem e do mal, desenvolveria então a sua própria humanidade,
de forma natural, e separadamente de Deus. Alcançando um elevado grau de
façanhas e conhecimentos pelas suas conquistas e aquisições como ser
auto-suficiente, teria em si mesmo o poder de formar opiniões independentemente
de Deus, não teria, porém, a vida divina em si mesmo. Era, portanto,
essa a alternativa que estava perante ele. Escolhendo o caminho do Espírito, o
caminho da obediência, poderia tornar-se um "filho" de Deus, dependendo
de Deus para a manifestação da sua vida ou, seguindo o curso natural, ele
podia, por assim dizer, dar o toque final em si mesmo, tornando-se um ser
auto-dependente, julgando e agindo separadamente de Deus. A história da
humanidade é o resultado da escolha que Adão fez.
A escolha de Adão, a razão da Cruz
Adão escolheu a árvore do
conhecimento do bem e do mal, tomando assim uma posição de independência. Ficou
sendo o que até hoje é o homem (aos seus próprios olhos): homem
"plenamente desenvolvido" que pode comandar o conhecimento, decidir
por si mesmo, prosseguir ou deter-se. Desde então, tinha
"entendimento" (Gn 3.6). Mas, a conseqüência que daí resultou, envolvera
cumplicidade com Satanás e o colocara sob o juízo de Deus. Foi por isso que o
acesso à árvore da vida lhe teve de ser, daí em diante, vedado.
Dois planos de vida foram
colocados perante Adão: o da vida divina, em dependência de Deus, e o da vida
humana, com os seus recursos "independentes". Foi pecaminosa a
escolha que Adão fez, do último, porque assim se tornou aliado de Satanás para
frustrar o eterno propósito de Deus. Escolheu o desenvolvimento da sua própria
humanidade, querendo se tornar um homem melhor ou talvez perfeito, segundo o
seu próprio padrão — porém, separado de Deus. O resultado, no entanto, foi a
morte, porque ele não tinha em si mesmo a vida divina imprescindível para
realizar em si o propósito de Deus, e acabou escolhendo ser um agente
"independente", do Inimigo. Assim, em Adão, todos nos tornamos
pecadores, dominados por Satanás, sujeitos à lei do pecado e da morte e merecendo
a ira de Deus. Vemos, assim, a razão divina da morte e da ressurreição do
Senhor Jesus. Vemos, também, a razão divina da verdadeira consagração — para
nos considerarmos mortos para o pecado mas vivos para Deus, em Cristo Jesus, e
para nos apresentarmos a Deus como vivos dentre os mortos. Todos devemos ir à
Cruz, porque o que está em nós, por natureza, é uma vida bem nossa, sujeita à
lei do pecado. Adão escolheu uma vida própria ao invés da vida divina; assim,
Deus teve que pôr termo a tudo quanto era de Adão. O nosso "velho
homem" foi crucificado.
Deus incluiu-nos todos em
Cristo e crucificou-O, como o último Adão, aniquilando assim tudo o que
pertence a Adão.
Depois, Cristo ressuscitou em
nova forma; ainda com um Corpo mas "no espírito"; não mais "na
carne". "O último Adão, porém, é espírito vivificante" (I Co
15.45). O Senhor Jesus agora tem um Corpo ressurreto, espiritual, glorioso e,
desde que não está mais na carne, pode agora ser recebido por todos. "Quem
de mim se alimenta, por mim viverá", disse Jesus (João 6.57). Os judeus
acharam revoltante a idéia de comer a Sua carne e beber o Seu sangue, mas,
evidentemente, não podiam recebê-Lo então, porque Ele estava, literalmente, na
carne. Agora que Ele está no Espírito, cada um de nós pode recebê-Lo, e é participando
da Sua vida ressurreta que somos constituídos filhos de Deus. "A todos
quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus... os
quais nasceram... de Deus" (João 1.12,13). Deus não está empenhado em
reformar a nossa vida; o Seu pensamento não consiste em trazê-la a certo grau
de aperfeiçoamento, porque a nossa vida situa-se num plano essencialmente
errado. Naquele plano, Ele não pode agora levar o homem à glória. Tem que
criar um novo homem, nascido de Deus, nascido de novo. A regeneração e a
justificação caminham juntas.
Aquele que tem o Filho tem a vida
Há vários planos de vida. A
vida humana situa-se entre a vida dos animais inferiores e a vida de Deus. Não
podemos lançar uma ponte sobre o golfo que nos distancia do plano inferior ou
do plano superior, e a separação que há entre a nossa vida e a de Deus é infinitamente
superior à que existe entre a nossa vida e a dos animais. Os seus filhos
nasceram na sua família e recebem seu nome porque você lhes comunicou a sua própria
vida. Quanto ao seu cão, talvez seja inteligente, bem comportado, um cão
notável, mas nunca poderia ocupar a posição de ser seu filho. A questão não é:
"Trata-se de um cão bom ou mau?" mas, simplesmente: "É um
cão!" Não é por ser mau que fica desqualificado para ser filho: é
simplesmente por ser cão. O mesmo princípio se aplica às relações entre o
homem e Deus. A questão não é você é mais ou menos bom ou mau, mas,
simplesmente: "É homem!" Se a sua vida está num plano inferior ao da
vida de Deus, então você não pode pertencer à família divina. A nossa única
esperança, como homens, está em receber o Filho de Deus, e, quando o fazemos, a
Sua vida em nós constituir-nos-á filhos de Deus.
O que nós hoje possuímos em
Cristo é mais do que Adão perdeu. Adão era apenas um homem desenvolvido.
Permaneceu naquele plano e nunca possuiu a vida de Deus. Mas nós, que recebemos
o Filho de Deus, recebemos não só o perdão dos pecados, mas também recebemos a
vida divina que estava representada no Jardim pela árvore da vida. Pelo novo
nascimento, recebemos algo que Adão nunca tivera e não chegara a alcançar.
Todos vêm de um só
Deus deseja filhos que sejam
co-herdeiros com Cristo, na glória. Este é o Seu alvo, mas como pode Ele
realizá-lo? Voltemos agora a Hb 2.10,11: "Porque convinha que aquele, por
cuja causa e por quem todas as coisas existem, conduzindo muitos filhos à
glória, aperfeiçoasse por meio de sofrimento o Autor da salvação deles. Pois,
tanto o que santifica, como os que são santificados, todos vêm de um só. Por
isso é que ele não se envergonha de lhes chamar irmãos, dizendo: "A meus
irmãos declararei o teu nome, cantar-lhe-ei louvores no meio da
congregação".
Mencionam-se aqui duas
entidades: "muitos filhos" e "o Autor da salvação deles",
ou, noutras palavras, "o que santifica" e "os que são
santificados". Mas, diz-se que estas duas entidades "vêm de um
só". O Senhor Jesus, como homem, derivou a Sua vida de Deus e (noutro
sentido, mas igualmente verdadeiro) derivamos a nossa vida de Deus. Ele foi
"gerado... do Espírito Santo" (Mt " 1.20), e nós fomos
"nascidos do Espírito", "nascidos... de Deus" (João 3.5;
1.13). Assim, diz Deus, somos todos de Um. "De", no Grego, significa
"para fora de". O Filho primogênito e os muitos filhos são todos,
embora em sentidos diferentes, tirados "para fora de" a única Fonte
da vida. Temos hoje a vida que Deus tem no Céu, porque Ele a transmitiu a nós
aqui na terra. Este é o precioso "dom de Deus" (Rm 6.23).
É por essa razão que podemos
viver uma vida de santidade, porque não se trata de a nossa vida ter sido
modificada, e sim, de a vida de Deus ter sido implantada em nós.
Já notou que, nesta
consideração do propósito eterno, toda a questão do pecado deixa, finalmente,
de existir? O pecado entrou com Adão e mesmo quando ele for resolvido, como
tem de sê-lo, apenas somos levados à posição em que Adão se encontrou. Mas,
relacionando-nos de novo com o propósito divino — restaurando-nos o acesso à
árvore da vida — a redenção nos deu muito mais do que Adão jamais teve. Fez-nos
participantes da própria vida de Deus.
8
O
Espírito Santo
Tendo falado do eterno
propósito de Deus como motivo e explicação de tudo que Ele fez a nosso
respeito, e antes de voltarmos ao estudo das fases da vida cristã apresentadas
em Romanos, devemos considerar algo que forma a base e o poder vitalizante da
nossa vida cristã eficaz no serviço: a presença e o ministério pessoal do Espírito
Santo de Deus.
Aqui, também, tomaremos como
ponto de partida um versículo de cada uma das nossas seções de Romanos:
"O amor de Deus é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos
foi outorgado" (Rm 5.5). "Se alguém não tem o Espírito de Cristo,
esse tal não é dele" (Rm 8.9).
Deus não concede
arbitrariamente os Seus dons: são dados livremente a todos, mas em base definida.
Realmente, Deus nos tem "abençoado com toda sorte de bênção espiritual
nas regiões celestiais em Cristo" (Ef 1.3), mas para que aquelas bênçãos
que nos pertencem em Cristo se tornem nossas em experiências, temos que saber a
base e princípio delas.
Ao considerar o dom do
Espírito, servir-nos-á de auxílio pensar nele em dois aspectos, como o
Espírito derramado e o Espírito que habita interiormente, e o nosso propósito
agora é compreender em que base este duplo dom do Espírito Santo se torna nosso.
Não duvido de ser correto
distinguir entre as manifestações exteriores e interiores da Sua operação e de
que um exame da matéria nos levará à conclusão de ser mais preciosa a atividade
interior do Espírito Santo. Isto
não significa que Sua atividade exterior não seja também preciosa, pois Deus somente
dá boas dádivas aos Seus filhos. Infelizmente, pouca importância damos aos
nossos privilégios, por serem tão abundantes. Os santos do Antigo Testamento,
que não foram tão favorecidos como nós, podiam apreciar, melhor do que nós, a
preciosidade deste dom do Espírito derramado. Em seus dias era um dom
concedido apenas a uns poucos escolhidos — principalmente sacerdotes, juízes e
profetas — enquanto que hoje é a porção de cada filho de Deus. Nós, que somos pessoas
sem valor especial, podemos ter, repousando sobre nós, o mesmo Espírito que
esteve sobre Moisés, o amigo de Deus, sobre Davi, o rei amado, e sobre Elias, o
profeta poderoso. Recebendo o dom do Espírito Santo derramado, juntamo-nos às
fileiras dos servos escolhidos de Deus da Dispensação do Antigo Testamento. Uma
vez percebido o valor deste dom de Deus e o quanto dele precisamos,
perguntaremos imediatamente: como posso eu receber o Espírito Santo para me
equipar com dons espirituais, dando-me poder para o serviço? Em que condições o
Espírito Santo é dado?
O Espírito
derramado
Examinemos, primeiramente, At
2.32-36: "A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas.
Exaltado, pois, à destra de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito
Santo, derramou isto que vedes e ouvis. Porque Davi não subiu aos céus, mas ele
mesmo declara: Disse o Senhor ao meu Senhor; Assenta-te à minha direita, até
que eu ponha os teus inimigos por estrado dos teus pés. Esteja absolutamente
certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus que vós crucificastes,
Deus o fez Senhor e Cristo".
No v.33, Pedro declara que o
Senhor Jesus foi exaltado "à destra de Deus". Qual foi o resultado? Ele
recebeu do Pai a promessa do Espírito Santo"... e o que se seguiu?
Pentecostes! O resultado da Sua exaltação foi — "isto que vedes e
ouvis".
Em que condições, pois, o
Espírito Santo foi primeiro sobre o Seu povo? Foi quando da Sua exaltação ao
Céu. Esta passagem deixa absolutamente claro que o Espírito foi derramado
porque o Senhor Jesus foi exaltado. O derramamento do Espírito não tem relação
com os méritos que você ou eu talvez tenhamos, e, sim, unicamente com os do
Senhor Jesus. A questão do que nós somos não entra aqui em consideração, mas
unicamente aquilo que Ele é. Ele foi glorificado; portanto, o Espírito é
derramado.
Porque o Senhor Jesus morreu
na Cruz, eu recebi o perdão dos meus pecados; porque o Senhor Jesus foi
exaltado à mão direita do Pai, eu recebi o Espírito derramado. Tudo é por
causa dEle; nada é por minha causa. A remissão dos pecados não se baseia no
mérito humano, e, sim, na crucificação do Senhor; a regeneração se fundamenta
na ressurreição do Senhor; e o revestimento do Espírito Santo depende da
exaltação do Senhor. O Espírito Santo não foi derramado sobre você ou sobre
mim para provar quão grandes nós somos, mas para provar a grandeza do Filho de
Deus.
No v.36, a palavra
"pois", como de costume, se relaciona a uma declaração feita antes;
neste caso, refere-se ao v. 33, em que Pedro se refere ao derramamento do
Espírito sobre os discípulos, "isto que vedes e ouvis", passando
então a dizer: "Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de
Israel, de que a este Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e
Cristo". Noutras palavras, Pedro diz aos seus ouvintes: "Este
derramamento do Espírito que vocês estão vendo e ouvindo com seus próprios
olhos e ouvidos, comprova que Jesus Cristo, crucificado por vocês, é agora
tanto Senhor como Cristo". O Espírito Santo foi derramado, na Terra, para
comprovar o que já acontecera no Céu — a exaltação de Jesus de Nazaré à destra
de Deus. O propósito de Pentecostes é provar a Soberania de Jesus Cristo.
Havia um jovem chamado José,
que era muito querido do seu pai. Certo dia, o pai recebeu a notícia da morte
do filho e, durante anos, Jacó lamentou a perda de José. Mas José não estava
na sepultura; estava num lugar de glória e de poder. Depois de Jacó ter
lamentado a morte de seu filho durante anos, foi-lhe subitamente revelado que
José estava vivo e que se encontrava no Egito, ocupando posição de destaque. A
princípio, Jacó não podia acreditar. Era demasiadamente bom para ser verdade,
mas, finalmente, se deixou persuadir da veracidade da história da exaltação de
José. Como chegou ele a tal convicção? Saiu de casa e viu os carros que José
enviou do Egito ao seu encontro. Os carros tipificam o Espírito Santo enviado,
tanto para ser a prova de que o Filho de Deus está na glória, como para nos
levar para lá. Como sabemos que Jesus de Nazaré, que foi crucificado por homens
ímpios há quase dois mil anos está agora à destra do Pai na glória? Como
podemos saber com certeza que Ele é Senhor dos senhores e Rei dos reis? Podemos
sabê-lo, sem qualquer dúvida, porque Ele derramou sobre nós o Seu Espírito.
Aleluia! Jesus é Senhor! Jesus é Cristo! Jesus de Nazaré é não só Senhor como
também Cristo.
A exaltação do Senhor Jesus é
a condição prévia do derramamento do Espírito Santo. É então possível que o Senhor
tenha sido glorificado sem que nós também recebêssemos o Espírito?
Em que base recebemos o perdão dos pecados? Foi porque oramos fervorosamente
ou porque lemos a Bíblia de capa a capa, ou pela nossa freqüência regular na
igreja? Foi por causa de qualquer dos nossos méritos? Não! Mil vezes não! Em
quais condições, então, foram perdoados os nossos pecados? Hb 9.22 diz:
"Sem derramamento de sangue não há remissão". A única condição
prévia do perdão é o derramamento de Sangue; e desde que o Sangue precioso foi
derramado, os nossos pecados foram perdoados.
Ora, o princípio segundo o
qual recebemos o revestimento do Espírito Santo é exatamente o mesmo: o Senhor
foi crucificado e,portando,os nossos pecados foram perdoados; o Senhor foi
glorificado e, portanto, o Espírito foi derramado sobre nós. É possível que o
Filho de Deus tenha derramado o Seu Sangue sem que os seus pecados, querido
filho de Deus, tenham sido perdoados? Nunca! E possível, então, que o Senhor
Jesus tenha sido glorificado sem que você tenha recebido o Espírito? Nunca!
Voltemos à questão da justificação.
Como fomos justificados? Não por ter feito alguma coisa, mas por aceitar que
o Senhor já fez tudo. De igual modo, o revestimento do Espírito Santo entra na
nossa experiência, não em virtude de fazermos alguma coisa por nós mesmos, mas
como resultado de pormos a nossa fé no que o Senhor já fez.
Se nos faltar experiência,
devemos pedir a Deus uma revelação do fato eterno do batismo no Espírito Santo c
como um dom do Senhor Exaltado à Sua Igreja. Desde que percebamos isto,
cessará o esforço e a oração dará lugar ao louvor. Foi uma revelação daquilo
que o Senhor fez pelo mundo que pôs fim aos nossos esforços no sentido de nos
assegurarmos do perdão dos pecados, e é uma revelação do que o Senhor fez pela
Sua Igreja que porá termo aos nossos esforços no sentido de alcançarmos o
batismo no Espírito Santo. Concorremos com nossas próprias obras porque não
vimos a obra de Cristo. Uma vez que a vejamos, porém, a fé brotará nos nossos
corações e, na medida em que cremos, a experiência se segue.
Há algum tempo, um jovem que
era crente havia apenas cinco semanas e que antigamente se opunha violentamente
ao Evangelho, assistiu a uma série de reuniões em que preguei em Xangai. No fim
de uma destas reuniões, em que falei nos moldes acima, foi para casa e começou
a orar com fervor: "Senhor, eu quero o poder do Espírito Santo. Visto que
Tu foste glorificado, não queres agora derramar o Teu Espírito sobre mim?
" Depois, corrigiu-se a si mesmo, e disse: "Oh, não Senhor, isto
está tudo errado", e começou a orar de novo: "Senhor Jesus, nós
temos uma vida em comum, Tu e eu, e o Pai nos prometeu duas coisas — a glória
para Ti e o Espírito para mim. Tu, Senhor, já recebeste a glória, portanto, é
inadmissível pensar que eu não tenha recebido o Espírito. Senhor, eu louvo o
Teu nome! Tu já recebeste a glória e eu já recebi o Espírito". Desde
aquele dia em diante, estava sempre consciente do poder do Espírito sobre ele.
Mais uma vez, a fé é a chave. Assim como o
perdão é questão de fé, assim também é o recebimento do Espírito Santo em nossa
vida. Vendo Jesus no Calvário, sabemos que os nossos pecados estão perdoados;
vendo Jesus entronizado, sabemos que o Espírito Santo foi derramado sobre nós.
A base em que recebemos o revestimento do Espírito Santo não é a nossa oração,
o nosso jejum, a nossa expectação, e, sim, a exaltação de Cristo. Os que
ressaltam o tempo de "espera", realizando reuniões para tal fim,
apenas nos induzem ao erro, porque o dom não é para uns poucos favorecidos, mas
para todos, porque não nos é dado na base do que somos, mas devido ao que
Cristo é. O Espírito foi derramado para provar a Sua bondade e a Sua
grandeza, e não as nossas. Cristo foi crucificado e nós, portanto, fomos
perdoados. Cristo foi glorificado e nós, portanto, fomos revestidos com o poder
do Alto. É tudo por causa dEle.
Suponhamos que um descrente
manifeste o desejo de ser salvo e que nós lhe explicamos o caminho da salvação
e oramos com ele. Todavia, depois, ele ore desta forma: "Senhor Jesus,
creio que Tu morreste por mim e que Tu podes apagar todos os meus pecados.
Realmente creio que Tu me perdoarás". Sentiremos confiança em que tal
homem já é salvo? Quando teremos certeza de que ele nasceu de novo? É quando
diz: "Senhor, graças Te dou porque já perdoaste os meus pecados, já morreste
por mim, portanto, já foram apagados os meus pecados".
Acreditamos que uma pessoa
está salva quando a sua petição se transforma em louvor. Quando cessa de pedir
ao Senhor que lhe perdoe, e O louva porque Ele já o fez, visto que o Sangue do
Cordeiro já foi derramado. Semelhantemente, é possível esperarmos durante anos
sem nunca experimentar o poder do Espírito; quando, entretanto, cessamos de
implorar ao Senhor para que derrame o Seu Espírito sobre nós e quando, ao invés
disso, confiadamente O louvamos, porque o Espírito já foi derramado, visto que
o Senhor Jesus já foi glorificado, acharemos o nosso problema
resolvido. Graças a Deus! Nem um só dos Seus filhos necessita de agonizar, nem
mesmo de esperar, para que o Espírito seja dado. Jesus não será feito Senhor,
porque Ele já é Senhor. Portanto, eu não vou receber o Espírito, porque eu já O
recebi. É tudo uma questão de fé, da fé que vem pela revelação. Quando os
nossos olhos são abertos para ver que o Espírito já foi derramado, porque Jesus
já foi glorificado, então a oração dá lugar ao louvor nos nossos corações.
Todas as bênçãos espirituais
e dons de Deus são dados livre e gratuitamente, mas há condições que tem de se
cumpridas da nossa parte, como se vê claramente em At «2.38,39:
"Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo
para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo. Pois
para vós outros é a promessa, para vossos filhos, e para todos os que ainda
estão longe, isto é, para quantos o Senhor nosso Deus chamar".
Nesta passagem mencionam-se
quatro assuntos: o Arrependimento, o Batismo, o Perdão e o Espírito Santo. As
duas primeiras são condições, as duas últimas são dons. Quais são as condições
a serem preenchidas para termos o perdão dos pecados? Segundo a Palavra de
Deus, são duas: o Arrependimento e o Batismo.
A primeira condição é o
arrependimento, que significa uma mudança de mente. Antes, considerava o
pecado agradável, mas agora mudei de opinião; considerava o mundo um lugar
atraente, mas agora sei melhor; achava coisa triste ser crente, mas agora penso
de forma diferente; achava deliciosas certas coisas, agora penso que são vis;
não reconhecia o valor de determinadas coisas, agora, considero-as imensamente
preciosas. Isto é uma mudança de mente e é, portanto, o arrependimento. Nenhuma
vida pode ser realmente transformada sem tal mudança de mente.
A segunda condição é o
batismo. O batismo é uma expressão exterior da fé interior. Quando verdadeiramente
cri, no meu coração, que tinha morrido com Cristo, que fora sepultado e
ressuscitara com Ele, então pedi o batismo. Deste modo declarei publicamente o
que creio no íntimo.
Estas são, pois, duas
condições do perdão divinamente indicadas — o arrependimento, e a fé
publicamente manifestada. Você já se arrependeu? Já deu testemunho público da
sua união com o Senhor? Recebeu, então, a remissão dos pecados e o dom do
Espírito Santo? Afirma que recebeu apenas o primeiro dom e não o segundo? Mas,
meu amigo, Deus lhe ofereceu duas coisas, caso você cumprisse duas obrigações.
Por que tomou posse apenas de uma? O que vai fazer da segunda? Seja cumpriu as
condições, tem direito aos dois dons e não apenas a um deles. Já tomou posse de
um; por que não aceita o outro? Diga ao Senhor: "Senhor, cumpri as condições
para receber a remissão dos pecados e o dom do Espírito Santo, mas,
nesciamente, apenas tomei posse do primeiro. Agora venho receber o dom do
Espírito Santo e Te louvo e dou graças por ele".
A diversidade da experiência
Mas, você perguntará:
"Como saberei que o Espírito Santo veio sobre mim? " Não posso
dizer-lhe como saberá, mas posso afirmar que saberá. Não nos foi dada
qualquer descrição das sensações e emoções pessoais dos discípulos no
Pentecoste, mas sabemos que os seus sentimentos e o seu comportamento foram,
de alguma forma, anormais, porque o povo, presenciando-os, disse que eles
estavam embriagados. Quando o Espírito Santo cai sobre o povo de Deus, há
alguma coisa que o mundo não pode explicar. Resultarão manifestações
sobrenaturais de algum gênero, mesmo que não seja mais do que uma sensação
dominante da Presença Divina. Não podemos e não devemos estipular que forma
tomarão tais expressões exteriores, em cada caso, mas uma coisa é certa, que
cada um, sobre quem o Espírito Santo vier, terá consciência disso.
Quando o Espírito Santo veio
sobre os discípulos, no Pentecostes, houve algo de extraordinário no seu comportamento,
e Pedro ofereceu uma explicação tirada da Palavra de Deus, a todos que o
testemunharam. O seguinte é um resumo do que Pedro disse: "Quando o
Espírito Santo cai sobre os crentes, alguns profetizarão, outros sonharão
sonhos e outros terão visões. Isto é aquilo que Deus declarou pelo profeta
Joel". Mas, na referida passagem de Joel, 2.28,29, profecias, sonhos e
visões são apresentados como acompanhantes do derramamento do Espírito Santo,
e parece que estas provas faltaram no Dia
de Pentecostes. Houve, porém, o vento impetuoso, e as línguas
repartidas como que de fogo, e o falar em línguas, que a profecia de Joel não
mencionou. O que queria dizer Pedro, ao citar o profeta, quando o que Joel
mencionou faltava aos discípulos, e o que os discípulos experimentaram não foi
mencionado por Joel?
Não nos esqueçamos que Pedro
falava sob a direção do Espírito Santo. O Livro dos Atos foi escrito sob inspiração
do Espírito, e nem uma palavra foi usada ao acaso. Quando Pedro disse:
"Mas o que ocorre é o que foi dito por intermédio do profeta Joel"
(At 2.16), queria dizer que a experiência era da mesma ordem. O que o Espírito
Santo ressalta por meio de Pedro é a diversidade das experiências. As
evidências externas podem ser muitas e variadas, e temos que reconhecer que às
vezes são estranhas; mas o Espírito é UM SÓ e Ele é Senhor (ver I Coríntios
12.4-6).
O que aconteceu ao Dr.
Torrey, quando o Espírito Santo veio sobre ele, depois de ter servido durante
anos como ministro do Evangelho? Eis como ele se expressa:
"Recordo-me do lugar
exato onde estava ajoelhado, em oração, no meu escritório... Foi um momento de
muito silêncio, um dos momentos de maior quietude que já conheci... então Deus
disse-me, simplesmente, não numa voz audível, mas no meu coração: "É teu,
agora vai e prega". Deus já dissera a mesma coisa em I João 5.14,15; mas,
a essa altura, eu não conhecia a minha Bíblia como a conheço agora, por isso
Ele teve compaixão da minha ignorância e disse-a diretamente à minha alma. Fui
e preguei, e, a partir daquele dia até hoje, tenho sido um ministro novo...
Algum tempo depois desta experiência (não me recordo exatamente quanto tempo depois)
quando me encontrava sentado, certo dia, no meu quarto... subitamente... dei
por mim gritando alto, de exultação (Não fui habituado a clamar alto e não tenho
um temperamento caracterizado para louvar a Deus em voz alta, mas agora o fiz
como os metodistas que mais gritavam), "Glória a Deus, glória a Deus,
glória a Deus", e não podia deter-me... Mas não foi então que fui batizado
com o Espírito Santo. Fui batizado com o Espírito Santo quando (*) pela simples
fé na Palavra de Deus".
As manifestações exteriores,
no caso de Torrey, não foram as mesmas que encontramos descritas por Joel ou
por Pedro, mas "o que ocorre é o que foi dito por intermédio do profeta
Joel". Não é um fac-símile e, contudo, é a mesma coisa.
E como se sentiu e agiu D. L.
Moody quando o Espírito veio sobre ele?
"Clamava continuamente a
Deus para que me enchesse do Seu Espírito. Certo dia, na cidade de Nova
Iorque, — oh, que dia! — não posso descrevê-lo, raramente me refiro a ele; é
uma experiência demasiado sagrada para se falar dela. Paulo teve uma
experiência de que nunca falou durante quatorze anos. Apenas posso dizer que
Deus Se revelou a mim, e tive do Seu amor uma experiência tal que fui obrigado
a pedir-Lhe que detivesse a Sua mão. Voltei a pregar. Os sermões não eram diferentes;
não apresentei quaisquer verdades novas e, contudo, centenas converteram-se.
Não queria voltar à posição em que me encontrava antes daquela bendita
experiência, ainda que me dessem o mundo inteiro, este seria para mim como a
poeira mais leve da balança".
As manifestações exteriores,
que acompanharam a experiência de Moody, não conferiram exatamente com a
descrição de Joel, de Pedro ou de Torrey. Mas quem pode duvidar de que
"isto", que Moody experimentou, era "aquilo" que fora
experimentado pelos discípulos no Pentecostes? Não era a mesma coisa, quanto à
sua manifestação, na essência, porém, era a mesma coisa.
E qual foi a experiência do
grande Charles Finney quando sobre ele veio o poder do Espírito Santo?
"Recebi um batismo
poderoso no Espírito Santo, sem qualquer expectação prévia do que aconteceria,
sem jamais ter pensado que haveria para mim tal coisa, sem qualquer recordação
de já ter ouvido alguém falar de tal experiência; o Espírito Santo desceu sobre
mim de tal maneira que parecia traspassar-me o corpo e a alma. Não há palavras
que possam expressar o amor maravilhoso que foi derramado no meu coração.
Chorei em voz alta, de alegria e amor''.
A experiência de Finney não
foi idêntica à do Pentecostes, nem à da experiência de Torrey, nem da de Moody;
mas "o que ocorre é o que foi dito".
Quando o Espírito Santo é
derramado sobre o povo de Deus, as experiências variarão consideravelmente.
Alguns receberão nova visão, outros conhecerão nova liberdade em ganhar almas,
outros proclamarão a Palavra de Deus com poder, e ainda outros serão cheios de
alegria celestial e louvor transbordante. Cada ocorrência é outro exemplo do
que "foi dito". Louvemos ao Senhor por toda experiência que se
relaciona com a exaltação de Cristo e da qual pode- se dizer verdadeiramente
que é mais uma evidência do que foi profetizado. Nada há de estereotipado a
respeito das relações e ações de Deus com os Seus filhos. Portanto, não
devemos, pelas nossas prevenções e preconceitos, fazer compartimentos estanques
para a operação do Espírito Santo, quer nas nossas próprias vidas, quer nas
vidas dos outros. Isto aplica-se igualmente àqueles que requerem alguma
experiência, alguma manifestação particular, como "falar em línguas",
como evidência de que o Espírito veio sobre eles, e também àqueles que negam
que qualquer manifestação seja dada. Devemos deixar Deus trabalhar livremente,
corno Ele quer, e dar a evidência à Sua obra, como Ele deseja. Ele é Senhor e
não nos cabe a nós legislar por Ele.
Regozijemo-nos porque Jesus
está no Trono e louvemo-Lo porque, desde que Ele está glorificado, o Espírito
foi derramado sobre todos nós. À medida em que aceitarmos a realidade divina,
com toda a simplicidade da fé, com tal segurança a conheceremos na nossa
própria experiência que ousaremos proclamar com confiança — "O que ocorre
é o que foi dito... "
A habitação
interior do Espírito
Tratemos agora do segundo
aspecto do dom do Espírito Santo que, como veremos no próximo capítulo,
constitui mais particularmente o assunto de Romanos 8. É o que já chamamos a
habitação interior do Espírito. "Se de fato o Espírito de Deus habita em
vós" (Rm 8.9). "Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a
Jesus dentre os mortos..." (Rm 8.11).
Assim como precisamos de
receber da parte de Deus uma revelação para realmente conhecermos experimentalmente
o Espírito derramado, assim também acontece com a realidade da habitação
interior do Espírito Santo. Quando vemos Cristo como Senhor, objetivamente
-isto é, quando O vemos exaltado no Trono, no céu — então experimentamos o
poder do Espírito sobre nós. Quando vemos Cristo como Senhor, subjetivamente
-isto é, como Soberano e Senhor efetivo nas nossas vidas - então conheceremos o
poder do Espírito dentro de nós.
A revelação da habitação
interior do Espírito foi o remédio que Paulo ofereceu aos cristãos de Corinto,
para a sua falta de espiritualidade. É importante notar que os cristãos em
Corinto se preocupavam com os sinais visíveis do derramamento do Espírito
Santo e que tiveram muitas experiências de "línguas" e de milagres,
enquanto que, ao mesmo tempo, as suas vidas estavam cheias de contradições e
eram um opróbrio para o nome do Senhor. Tinham, de forma absolutamente
evidente, recebido o Espírito Santo e, contudo, permaneciam espiritualmente
imaturos; e o remédio que Deus lhes ofereceu foi o mesmo que hoje oferece à Sua
Igreja para o mesmo mister e o mesmo problema.
Na carta que Paulo lhes
dirigiu, escreveu: "Não sabeis que sois o santuário de Deus, e que o
Espírito de Deus habita em vós?" (I Co 3.16). Orou em prol de outros, para
que o seu entendimento fosse iluminado: "...para que saibais" (Ef
1.18). O conhecimento dos fatos divinos era a necessidade dos cristãos de
então, e não é menos a necessidade dos cristãos hoje. Necessitamos de que os
olhos do nosso entendimento sejam abertos, para podermos saber que Deus, pelo
Seu Espírito Santo, fez dos nossos corações
a Sua morada. Deus está presente na Pessoa do Espírito, e Cristo também
está presente na Pessoa do Espírito. Assim, se o Espírito Santo habitar em
nosso coração, teremos também o Pai e o Filho habitando em nós. Isto não é
mera teoria ou doutrina, mas uma bênção na realidade. Talvez entendemos que o Espírito
está realmente em nosso coração; entendemos, também, que Ele é uma Pessoa?
Compreendemos que ter o Espírito dentro de nós é ter, em nós, o Deus vivo?
Para muitos cristãos, o
Espírito Santo é completamente irreal. Consideram-No uma mera influência, ama
influência para o bem, sem dúvida, mas apenas e unicamente uma influência. No
seu pensamento, tanto a consciência como o Espírito estão mais ou menos
identificados como "alguma coisa" dentro deles, que os leva a reconhecer
quando são maus e que procura mostrar-lhes como serem bons. O problema dos
cristãos em Corinto não era que lhes faltasse o Espírito, vivendo interiormente
nas suas vidas, mas que lhes faltava o conhecimento da Sua presença. Não
conseguiam entender a grandeza dAquele que viera para fazer a Sua morada nos
seus corações, de modo que Paulo escreveu-lhes: "Não sabeis que sois o
santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?" Sim, este era o
remédio para a sua espiritualidade — conhecer, precisamente, Quem realmente
era Aquele que neles habitava.
O Tesouro do Vaso
Você sabe, meu amigo, que o
Espírito que vive dentro de você é o próprio Deus? Oxalá fossem abertos os
nossos olhos para vermos a grandeza do Dom de Deus! Oxalá pudéssemos nós
compreender a vastidão dos recursos ocultos nos nossos próprios corações! Eu
podia clamar de alegria ao pensar: "O Espírito, que habita dentro de mim,
não é mera influência, e, sim, uma Pessoa viva, o próprio Deus. O infinito
Deus está dentro do meu coração". Acho muito difícil comunicar a maravilha
desta descoberta, que o Espírito Santo que habita no meu coração é uma Pessoa.
Posso apenas repetir: "Ele é uma
Pessoa!" E continuar repetindo: "Ele é uma
Pessoa!"
Oh, amigo, de bom grado
repetiria cem vezes: O Espírito de Deus, dentro de mim, é uma Pessoa. Eu
sou apenas, um vaso de barro, mas, este vaso de barro, contém um tesouro de indescritível
valor: o Senhor da glória.
Toda a ansiedade e a
irritação dos filhos de Deus terminaria se os seus olhos fossem abertos para
ver a grandeza do tesouro contido nos seus corações. Você sabe que há, no seu
próprio coração, recursos suficientes para satisfazer todas as necessidades de
cada circunstância em que poderá jamais encontrar-se? Sabe que há aí poder
suficiente para mover a cidade em que vive? Sabe que há poder suficiente para
abalar o universo? Digo-lhe mais uma vez, com toda a reverência: você nasceu de
novo do Espírito de Deus, e carrega Deus no coração.
Toda a leviandade dos filhos
de Deus cessaria, também, se compreendessem a grandeza do tesouro que há no
seu íntimo. Se você tiver apenas dez cruzeiros no bolso, poderia passear alegre
e despreocupadamente pela rua, e se perder o dinheiro, pouco importa, pois não
está em causa grande quantia. Mas se você levar mil cruzeiros no bolso, a
situação seria totalmente diferente, e todo o seu comportamento também seria
diferente. Haverá grande alegria no seu coração, mas nem por isto passará
descuidadosamente pela rua; a todo o momento afrouxará o passo para colocar a
mão no bolso, apertando o seu novo tesouro com a mão, e depois continuará o seu
caminho com alegre seriedade.
Nos tempos do Antigo
Testamento, havia centenas de tendas no arraial dos israelitas, mas uma havia
que era diferente de todas as demais. Nas tendas comuns, podia-se fazer o que
se desejasse — comer ou jejuar, trabalhar ou descansar, estar alegre ou triste,
barulhento ou silencioso. Aquela outra tenda, porém, impunha reverência e
temor. Podia-se entrar ou sair das tendas comuns falando ruidosamente e rindo
levianamente, mas, logo que se aproximasse daquela tenda especial, andava-se
instintivamente com mais calma e solenidade, e, quando se estava diante dela,
as pessoas curvavam a cabeça em silêncio solene. Ninguém podia tocar-lhe
impunemente. Se um homem ou um animal ousasse fazê-lo, a conseqüência seria a
morte. O que haveria de tão especial a respeito dela? Era o templo do Deus
vivo. A sua aparência pouco tinha de especial, pois exteriormente, era
feita de materiais comuns, mas o grande Deus a escolhera para fazer dela a Sua
morada.
Você já entendeu o que
aconteceu na sua conversão? Deus veio ao seu coração e fez dele o Seu templo.
Nos dias do Antigo Testamento, Deus habitava num templo feito de pedras; hoje,
Ele habita num templo composto de crentes vivos. Quando realmente vemos que
Deus fez dos nossos corações o Seu lugar de habitação, que profunda reverência
sobrevirá às nossas vidas! Cessarão toda a frivolidade e toda a leviandade,
como também toda a complacência própria, quando soubermos que somos o
templo de Deus e que o Espírito Santo de Deus habita em nós. Já se compenetrou
da verdade de que aonde quer que vá, leva consigo o Espírito de Deus? Não leva
unicamente a Bíblia consigo, nem mesmo um ensino muito bom a respeito de Deus,
e, sim, leva o próprio Deus.
A razão por que muitos
cristãos não experimentam o poder do Espírito, embora Ele realmente habite nos
seus corações, é que lhes falta reverência. E falta-lhes reverência porque não
têm tido os seus olhos abertos para a realidade da Sua presença que não
entenderam. Por que é que alguns cristãos vivem vidas vitoriosas enquanto outros
vivem numa condição de constante derrota? A diferença não se explica, quer
pela presença quer pela ausência do Espírito (pois Ele habita no coração de
cada filho de Deus), mas porque alguns reconhecem a Sua habitação interior e
os outros não. A verdadeira revelação da habitação interior do Espírito,
revolucionaria a vida de qualquer cristão.
A Soberania Absoluta de Cristo
"Acaso não sabeis que o
vosso corpo é santuário do Espírito Santo que está em vós, o qual tendes da
parte de Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por preço.
Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo" (I Co 6.19-20).
Uma vez feita a descoberta
que somos o lugar onde Deus habita, devemos em seguida nos render totalmente a
Ele. Quando percebemos que somos o templo de Deus, imediatamente reconhecemos
que não somos de nós mesmos. A consagração seguirá a revelação. A diferença
entre cristãos vitoriosos e cristãos derrotados não está em terem alguns deles
o Espírito, e os outros, não;mas em que haja alguns que conhecem Sua
atuação no seu íntimo, habitando ali e implantando na sua vida o domínio de
Deus, enquanto outros ainda querem ser senhores de si mesmos.
A revelação é o primeiro
passo para a santidade, e a consagração é o segundo. Chegará um dia em nossas
vidas, tão definido como o dia da conversão, em que abandonaremos todos os
direitos sobre nós mesmos e nos submeteremos à soberania absoluta de Jesus
Cristo. Talvez haja um acontecimento sensível, vindo da parte de Deus, para
comprovar a realidade da nossa consagração, mias, havendo ou não havendo, deve
ser um dia em que, sem reservas, nos submetemos inteiramente a Ele — nossa
pessoa, nossa família, nossas possessões, nossos negócios, nosso tempo. Tudo
quanto temos e quanto somos deve vir a ser dEle, para doravante ser colocado
inteiramente à Sua disposição. Desde aquele dia, já não somos senhores de nós
mesmos, e, sim, apenas mordomos. Até que a soberania de Jesus Cristo seja um
fato consumado em nosso coração, o Espírito não pode realmente operar em nós de
maneira eficaz. Isto só pode ser feito quando nossa vida é entregue totalmente
à Sua direção. Se não Lhe dermos autoridade absoluta sobre as nossas vidas, Ele
pode estar presente mas não pode exercer o Seu poder. O poder do Espírito é
detido.
Você está vivendo para o
Senhor, ou para si mesmo? Talvez esta pergunta seja generalizada demais para se
responder facilmente, então vou ser mais específico: você tem alguma coisa em
sua vida que Deus está pedindo da sua parte, e que você está Lhe recusando? Há
qualquer ponto de atrito entre você e Deus? Antes de ter sido terminada toda
controvérsia com Deus, e entregue ao Espírito Santo pleno domínio da vida do
crente, Ele não poderá reproduzir Cristo em tal vida
Deus espera que resolvamos
todas as nossas controvérsias com Ele. A rendição absoluta de nós mesmos ao
Senhor depende, geralmente, de alguma coisa específica e Deus a aponta com
precisão. Ele quer que a entreguemos a Ele, pois Ele deve ter tudo. Fiquei
impressionadíssimo ao ler o que escreveu certo grande líder político na sua
autobiografia: "Não desejo coisa alguma para mim mesmo. Quero tudo para a
minha pátria." Se um homem pode se dispor a deixar que a sua pátria tenha
tudo e ele, nada, muito mais nós, os crentes, devemos saber dizer ao nosso
Deus: "Senhor, não quero nada para mim, quero tudo para Ti, quero o que Tu
quiseres e não desejo ter qualquer coisa fora da Tua vontade". Ele não
pode assumir Seu papel de Senhor até que nós aceitemos o nosso papel de
servos. Ele não nos chama para nos dedicarmos a Sua causa: o que pede é que nos
rendamos à Sua vontade. Você está pronto a tudo quanto Ele desejar?
Um pecador perdoado é
inteiramente diferente de um pecador comum; e um cristão consagrado é
inteiramente diferente de um cristão comum. Oxalá possa o Senhor nos levar a
tomar uma posição firme na questão da Sua soberania. Se nos rendermos
completamente a Ele, e reivindicarmos o poder do Espírito que habita em nós,
não necessitaremos esperar por sentimentos especiais ou por manifestações
sobrenaturais, mas poderemos simplesmente olhar para cima e louvá-Lo porque
algo já aconteceu. Podemos agradecer-Lhe confiadamente, porque a glória de
Deus já encheu o Seu templo. "Não sabeis que sois santuário de Deus, e que
o Espírito de Deus habita em vós? " "Não sabeis que o vosso corpo é
santuário do Espírito Santo, que está em vós, o qual tendes da parte de
Deus?"
9
O
significado e o valor de Romanos 7
Voltamos agora a Romanos 7,
um capítulo que por muitos tem sido considerado supérfluo. Talvez o fosse, se
os cristãos realmente percebessem que a velha criação foi anulada pela Cruz de
Cristo e que, pela Sua ressurreição, uma nova criação entrou em cena. Se
realmente tivéssemos chegado ao ponto de "saber", de
"considerar-nos" e de "apresentar-nos", na base do capítulo
6 de Romanos, segundo a explicação aventada no capítulo VI do nosso livro,
talvez neste caso não necessitássemos de Romanos 7.
Outras pessoas sentem que o
capítulo 7 está em lugar errado, preferindo colocá-lo entre os capítulos 5 e 6.
Tudo é tão perfeito e tão claro nas palavras do cap. 6, dizem, e então, vem a
prostração e o grito: "Desventurado homem que sou!" Poderia se
imaginar uma progressão mais descendente do que esta? Por esta razão, há
alguns que argumentam que Paulo aqui fala da sua experiência de homem não
regenerado. Bem, podemos admitir que algo do que ele aqui descreve não é bem
uma experiência cristã, mas os cristãos que o experimentam não
constituem uma minoria. Qual é, pois, o ensino deste capítulo?
Romanos 6 trata da libertação
do pecado. Romanos 7 trata da libertação da Lei. No cap. 6, Paulo nos disse
como podíamos ser libertados do pecado, e concluímos que isto era tudo quanto
se exigia de nós. Agora, o cap. 7 vem nos ensinar que a libertação do pecado
não é suficiente, mas que precisamos também conhecer a libertação da Lei. Se
não estivermos totalmente emancipados da Lei, nunca poderemos experimentar a
plena ' emancipação do pecado. Mas qual é a diferença entre ser livre do pecado
e ser livre da Lei? Todos percebemos o valor daquele, mas onde está a necessidade
deste? Para apreciá-lo, devemos entender primeiramente o que é a Lei e como ela
opera.
A carne e o fracasso do homem
Romanos 7 tem uma lição para
nos ensinar, que se relaciona com a descoberta de que eu estou "na
carne" (Rm 7.5), de que "eu sou carnal" (7.14), e de que
"em mim, isto é, na minha carne, não habita bem nenhum" (7.18). Isto
vai além da questão do pecado, porque se relaciona também com a de agradar a
Deus. Consideramos aqui, não o pecado nas suas formas, mas o homem no seu
estado carnal. Este inclui o primeiro, mas vai um passo além, levando-nos a
descobrir que, nesta esfera também, estamos totalmente incapazes e que "os
que estão na carne não podem agradar a Deus" (Rm 8.8).
Vamos fazer uma ligeira pausa
para procurar descrever o que é, provavelmente, a experiência de muitos
cristãos que, embora sejam verdadeiramente salvos, ainda assim se deixam
dominar pelo pecado. Não quer dizer que vivem permanentemente sob o poder do
pecado, mas que há certos e determinados pecados que sempre os seguem de
perto, e que repetidas vezes cometem. Daí, certo dia, ouvem a plena mensagem do
Evangelho, de que o Senhor Jesus não morreu somente para purificá-los e
despojá-los dos seus pecados, mas que, quando Ele morreu, incluiu os pecadores
na Sua morte; de modo que não somente foi tratado o problema dos nossos
pecados, como também nós mesmos fomos pessoalmente o alvo da ação divina. Os
olhos de tais cristãos se abrem, e ficam sabendo que foram crucificados
com Cristo, e, como resultado desta revelação, consideram que morreram e
ressuscitaram com o Senhor, e, em segundo lugar, reconhecendo os direitos do
Senhor sobre eles, oferecem-se a Deus, como vivos dentre os mortos.
Percebem que não têm mais qualquer direito sobre si próprios. Este é o começo
de uma bela vida cristã, plena de louvor ao Senhor.
Em seguida, porém, alguém
começa a raciocinar da seguinte maneira: "Morri com Cristo e estou
ressurreto com Ele, e dei-me inteiramente a Ele para sempre. Agora devo fazer
alguma coisa por Ele, desde que Ele tanto fez por mim. Desejo agradar-Lhe e
fazer a Sua vontade". Assim, após o passo da consagração, ele procura
descobrir a vontade de Deus, e se dispõe a obedecer. Então, faz uma descoberta
estranha. Pensava que podia fazer a vontade de Deus, e pensava que a amava mas,
pouco a pouco, descobre que nem sempre gosta de fazê-la. Às vezes, encontra uma
relutância nítida e muitas vezes, quando se propõe fazer a vontade de Deus,
verifica que não pode. Então, começa a levantar dúvidas quanto à sua
experiência, e pergunta-se: "Será que realmente sei que fui incluído em
Cristo? Sim. Será que realmente me considero morto para o pecado e vivo para
Deus? Sim. Será que realmente me rendi a Ele? Sim. Já renunciei a minha
consagração? Não. Então, qual é o problema que está surgindo? " Quanto
mais este homem tenta fazer a vontade de Deus, tanto mais ele falha.
Finalmente, chega à conclusão de que nunca tivera sincero amor pela vontade de
Deus, e passa então a orar para receber a vontade e o poder de fazê-lo.
Confessa a sua desobediência, e promete que nunca mais desobedecerá. No
entanto, para cair uma vez mais, basta que ele se levante de onde estava
ajoelhado em oração! Antes de alcançar a vitória, fica de novo consciente de
outra derrota. Então, diz para si mesmo: "Provavelmente não foi
suficientemente definida a minha última decisão. Desta vez serei absolutamente
definido." Assim sendo, convoca toda a força de vontade que possui —
acabará, porém, por sofrer uma derrota pior do que nunca na próxima ocasião que
precisar fazer uma escolha. Finalmente, tem que aplicar a si as palavras de
Paulo: "Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem
nenhum: pois o querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo. Porque não
faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço" (Rm 7.18, 19).
O que a Lei ensina
Muitos crentes se vêem
lançados de súbito na experiência de Romanos 7 e não sabem por que. Imaginavam
que Romanos 6 era mais do que suficiente. Tendo apreendido o ensino deste
capítulo, pensavam que não havia mais possibilidade de fracasso e, então, para
grande surpresa sua, acharam-se repentinamente em Romanos 7. Qual é a
explicação?
Em primeiro lugar,
esclareçamos que a morte com Cristo, descrita em Romanos 6, é absolutamente
adequada para satisfazer todas as nossas necessidades. É a explicação daquela
morte, com tudo o que resulta dela, que está incompleta no capítulo 6. O
capítulo 7 explica e torna real para nós a declaração em Rm 6.14: "o pecado
não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, e, sim, da
graça". O problema é que não conhecemos ainda o que é ser livre da Lei.
Qual é, pois, o significado da Lei?
A graça significa que Deus
faz algo por mim. A Lei significa que eu faço alguma coisa por Deus. Deus tem
certos requisitos santos e justos que me impõe: isto é a Lei. Ora, se a Lei
significa que Deus requer algo da minha parte, então ser liberto da Lei
significa que Ele não requer mais coisa alguma de mim, porque Ele próprio fez
a necessária provisão. A Lei implica em Deus requerer que eu faça algo por Ele;
a libertação da Lei implica em que Ele já fez por mim, pela Sua graça, tudo
quanto exigia de mim, isentando-me do seu cumprimento. Eu (o homem carnal
de Rm 7.14) não preciso fazer nada para Deus - é isto o que significa ser
liberto da Lei. O problema em Rm 7 consiste em que o homem, na carne, procura
fazer alguma coisa para Deus. Esta tentativa imediatamente nos coloca de novo
debaixo da Lei, e a experiência de Romanos 7 começa a ser a nossa.
A medida que procuramos
compreender isto, fica sempre claro que a culpa não é da Lei. Paulo diz:
"A Lei é santa; e o mandamento santo e justo e bom" (Rm 7. 12). Não,
nada há de errado com a Lei, mas em mim há algo que não está indo nada bem. As
exigências da Lei são justas, mas a pessoa a quem são feitas não é justa. O
problema não está em haver requisitos injustos na Lei; está na minha
incapacidade de satisfazê-los. Está muito certa a exigência do governo que me
cobra cem cruzeiros de imposto de renda, mas tudo estará errado se eu tiver
apenas dez cruzeiros com que satisfazer tal exigência!
Sou um homem "vendido à
escravidão do pecado" (Rm 7.14). O pecado tem domínio sobre mim. Enquanto
me deixam em paz, pareço ser um homem excelente; é só pedir que eu faça alguma
coisa, para que minha pecaminosidade se revele.
Se tivermos um emprego muito
desajeitado, estes defeitos não se revelam enquanto ele fica sentado sem fazer
coisa alguma. Talvez seja de pouca utilidade, mas pelo menos não causa danos
ou prejuízos. Mandando-lhe que faça alguma coisa, seu dono imediatamente vê como
começam os problemas: quando se levanta, derruba a cadeira no chão, depois
tropeça num banco, e ainda deixa cair o que se lhe põe nas mãos para carregar.
As exigências são razoáveis, mas o homem é que está completamente inapto. Não
era um homem menos desajeitado enquanto estava sentado, mas foi a ordem que
lhe foi dada que o levou a demonstrar seus defeitos, os quais sempre tinha,
estando ativo ou estando desocupado.
Somos todos pecadores por
natureza. Se Deus nada requer da nossa parte, tudo parece ir bem, mas logo que
Ele nos exige alguma coisa, surge a oportunidade de se revelar nossa enorme
pecaminosidade. A Lei manifesta a nossa fraqueza. Enquanto me deixam ficar
sentado, pareço estar muito bem, mas logo que me pedem alguma coisa, vou
estragar e inutilizar o que da minha parte foi pedido. Quando a Lei santa é
aplicada ao homem pecaminoso, logo se manifesta plenamente a pecaminosidade
dele.
Deus sabe quem sou eu. Ele
sabe que, da cabeça aos pés, estou cheio de pecado; Ele sabe que sou a fraqueza
em pessoa, que sou incapaz de fazer coisa alguma. O problema, porém, é que eu
não o sei. Admito que todos os homens são pecadores e que, portanto, eu
também sou pecador; fico pensando, porém, que não sou tão desesperadamente
pecador como os outros. Deus tem que levar cada um de nós ao ponto de
reconhecermos quão fracos e sem forças estamos. Embora confessemos isto, não o
acreditamos na prática, por isso Deus tem que operar de modo especial para nos
convencer completamente. Sem a Lei, nunca saberíamos quão fracos e incapazes
somos. Paulo já tinha alcançado esta experiência, conforme se percebe quando
diz em Rm 7.7: "Mas eu não teria conhecido o pecado, senão por intermédio
da lei; pois não teria eu conhecido a cobiça, se a lei não dissera: Não
cobiçarás". Qualquer que tivesse sido a sua experiência com o restante da
Lei, foi o décimo mandamento, que literalmente traduzido é: "Não
desejarás..." que lhe revelou o seu problema. Foi neste aspecto que a sua
total fraqueza e incapacidade se lhe tornaram manifestas.
Quanto mais procuramos
guardar a Lei, tanto mais a nossa fraqueza se manifesta e tanto mais
profundamente penetramos em Romanos 7, até que se nos demonstra claramente a
nossa incapacidade total. Deus sempre o soube, nós, porém, não o reconhecemos,
e por isso Deus tem que nos submeter a experiências dolorosas, até que
cheguemos a reconhecer a verdade. É mister que nossa incapacidade nos seja
revelada de maneira completamente fora de dúvida, e Deus faz isto mediante a
Lei.
Deus sempre sabia que nunca
poderíamos guardar a Sua lei, porque somos tão maus que Ele não pede favores
nem faz exigências da nossa parte — nunca homem algum conseguiu tornar-se
aceitável a Deus por meio de guardar a lei. Em parte alguma do Novo Testamento
se diz que os homens de fé têm que guardar a Lei — diz-se que a Lei foi dada
para que a transgressão se tornasse manifesta. "Sobreveio a lei para que
avultasse a ofensa" (Rm 5.20). A Lei foi dada para nos classificar como
transgressores da Lei! Eu sou, sem dúvida, pecador em Adão: "Mas eu não
teria conhecido o pecado, senão por intermédio da lei... porque sem a lei está
morto o pecado... mas, sobrevindo o preceito, reviveu o pecado, e eu
morri" (Rm 7.7-9). É a Lei que revela a nossa verdadeira natureza. Temos
tão elevada opinião quanto ao valor da nossa própria pessoa, que necessitamos
da parte de Deus certas experiências para nos provar quão fracos somos.
Quando, afinal, entendemos,
confessamos: "Em todos os sentidos e aspectos sou pecador, e, de mim
mesmo, nada posso fazer para agradar a Deus".
Não, a Lei não foi dada na expectativa
de que a cumpríssemos. Foi-nos dada com o pleno conhecimento de que a
quebraríamos; e, depois de a termos quebrado tão completamente que fiquemos
convictos da nossa extrema necessidade, então a Lei já serviu o seu propósito.
Foi o nosso pedagogo, que nos trouxe a Cristo, para que Ele próprio pudesse
cumpri-la em nós (Gl 3.24).
Cristo, o fim da Lei
Em Romanos 6, vimos como Deus
nos libertou do pecado; em Romanos 7, vemos como Ele nos liberta da Lei. No
capítulo 6, vemos como se processa a libertação do pecado, na figura de um
senhor e do seu escravo; no capítulo 7, é a figura de dois maridos e uma
mulher que nos ensina como fomos libertos da Lei. A relação entre o pecado e o
pecador é simbolizada pela que existe entre senhor e servo; e entre a Lei e o
pecador é simbolizada pela que existe entre marido e mulher.
Notemos que na figura em que
Paulo ilustra a nossa libertação da Lei (Rm 7.1-14), há somente uma mulher e
dois maridos. A mulher só pode pertencer a um deles, e, infelizmente, está
casada com o menos desejável dos dois. É um homem bom, mas o problema está em
que esta mulher não está de forma alguma indicada para ele. Ele é homem de
personalidade forte e escrupuloso até ao mais alto grau; ela, por seu lado, é
decididamente indolente. Para ele, tudo é definido e preciso; para ela, tudo é
vago e casual. Ele exige
precisão em tudo, e ela aceita as coisas como se apresentam. Como poderia
haver alegria e felicidade num lar desta natureza?
Além disto, o marido é tão
exigente! E, contudo, não se pode queixar dele, visto que, como marido, tem o
direito de esperar o cumprimento de determinados deveres por parte dela e,
além disto, tudo quanto exige é perfeitamente legítimo. Não se pode achar
falta nem no homem, nem nas suas exigências; o problema é que não tem a mulher indicada para
cumpri-las. Os dois não podem, de forma alguma, caminhar juntos; as suas naturezas
são extremamente incompatíveis. Assim, a pobre mulher encontra-se em grande
angústia: está perfeitamente consciente dos erros que muitas vezes comete, mas
viver com um homem desta natureza parece-lhe que tudo o que ela diz e faz seja
errado. Que esperança pode existir para ela? Se pelo menos pudesse se casar com
aquele outro Homem, tudo estaria bem. Não é menos exigente do que o marido, mas
a verdade é que Ele ajuda muito também. Gostaria de se casar com Ele, mas o
marido ainda está vivo. Que fazer então? Pela Lei, está ela ligada ao marido,
e, a não ser que ele morra, não pode legitimamente casar-se com Aquele outro
Homem.
Esta ilustração é do próprio
Apóstolo Paulo. O primeiro marido é a Lei; o segundo marido é Cristo; e nós
somos a mulher. A Lei exige muito de nós e não oferece a mínima ajuda no cumprimento
das exigências. O Senhor Jesus não exige menos, antes pelo contrário (Mt 5.
21-48) mas o que exige, Ele próprio o cumpre em nós, enquanto a Lei nos deixa
sós e desamparados quanto à satisfação daquilo que de nós exige. Não é por nada
que a mulher desejou ser libertada do primeiro marido para poder casar-se com
aquele outro Homem. A sua única esperança de libertação, porém, está na morte
do seu primeiro marido, e este se agarra à vida com muita tenacidade, não
havendo a menor perspectiva do seu falecimento. "Até que o Céu e a Terra
passem, nem um i, ou um til, jamais passará da Lei, até que tudo se
cumpra" (Mt5.18).
A Lei continuará por toda a
eternidade. Sendo que a Lei nunca passará, como poderei eu chegar a me ligar a
Cristo? Como posso me casar com o segundo marido se o primeiro se recusa a
morrer? Há apenas uma saída. Se ele não morrer, então eu posso
morrer e, se eu morrer, aquela antiga relação conjugai é dissolvida. É
exatamente este o processo divino da libertação da Lei. O detalhe mais importante
a notar nesta seção de Romanos 7, é a transição do v. 3 para o v. 4. Os vv. 1 a
3 mostram que o marido deve morrer, mas, no v. 4, vemos que é a mulher que
morre. A Lei não morre, mas eu morro e, pela morte, fico livre da Lei.
Compreendamos claramente que a Lei nunca pode passar. As exigências justas
de Deus permanecem para sempre. Se eu viver, tenho que satisfazê-las, se
eu morrer, porém, a Lei perde as suas reivindicações sobre mim. Não pode
seguir-me para além da sepultura.
O mesmo princípio que opera
em nos libertar da Lei também efetua a nossa libertação do pecado. Quando eu
morri, o meu antigo senhor, o pecado, ainda continuou vivo, mas só pôde exercer
o seu poder sobre o seu escravo até a sepultura deste. De mim ele podia exigir
inúmeras coisas enquanto eu estava vivo mas, agora que estou morto, é em vão
que ele me chama. Estou liberto para sempre da sua tirania. Enquanto a mulher
vive, está ligada ao seu marido, mas com a morte dela, dissolve-se o laço
conjugai, e "desobrigada ficará da lei conjugai". A lei pode
continuar fazendo suas exigências, más, quanto a mim, terminou a autoridade que
ela exercia para me fazer cumpri-las.
Surge agora a pergunta vital:
"Como é que eu morro? "É justamente aqui que se revela o grande valor
da obra de nosso Senhor: "Também vós morrestes relativamente à lei, por
meio do corpo de Cristo" (Rm 7.4). Quando morreu Cristo, foi quebrantado o
Seu corpo, e, já que Deus me incluiu nEle (I Co 1.30), eu também fui quebrantado.
Quando Ele foi crucificado, eu fui crucificado com Ele.
Uma ilustração do Antigo
Testamento pode nos ajudar a tornar clara esta verdade. Relaciona-se com o Véu
que separava o Lugar Santo do Santo dos Santos (Êx 26.31). Naquela época, Deus
habitava dentro do Véu, e o homem fora; este podia olhar para o Véu, mas nunca
para dentro dele. O Véu simbolizava a carne do nosso Senhor, o Seu Corpo (Hb
10.20). Da mesma forma, nos Evangelhos, os homens podiam apenas ver a forma
exterior do nosso Senhor; não podiam, exceto por revelação divina (Mt 16.
16-17) ver o Deus que nEle habitava. Quando, porém, o Senhor Jesus morreu, o
véu do Templo foi rasgado de cima à baixo (Mt 27.51), como pela mão de Deus,
de modo que o homem podia olhar diretamente para dentro do Santo dos Santos.
Desde a morte de Cristo, Deus já não está velado, mas procura manifestar-Se (I
Co 2.7-10).
"Assim, meus irmãos,
também vós morrestes relativamente à lei, por meio do corpo de Cristo".
Por melhor de saúde e forte que se ache o marido daquela mulher, se ela morrer
ele pode ficar exigindo tudo quanto quiser da parte dela, mas ela não lhe dará
a mínima atenção: a morte libertou-a de todas as reivindicações do seu marido.
Nós estávamos no Senhor Jesus quando Ele morreu, e esta morte nos libertou para
sempre da Lei. Ele, porém, não ficou na sepultura: ao terceiro dia
ressurrectos, e nós, estando nEle, estamos também ressurretos. O Corpo do
Senhor Jesus fala não só da Sua morte, mas também da Sua ressurreição. Assim,
"por meio do corpo de Cristo", nós estamos não somente "mortos
para a lei" mas, também, vivos para Deus.
O propósito de Deus, ao
unir-nos a Cristo, não foi meramente negativo, foi gloriosamente positivo —
"para pertencerdes a outro" (Rm 7.4). A morte dissolveu o antigo
vínculo conjugai de modo que a mulher, levada ao desespero pelas constantes
exigências do primeiro marido, que nunca levantou um dedo para auxiliá-la a
cumpri-las, fica agora livre para se casar com o outro Homem que, em relação a
qualquer coisa que dela requeira, Se torna nela o poder necessário para Lhe dar
satisfação.
E qual é o resultado desta
união? "Para... frutifiquemos para Deus" (Rm 7.4). Pelo corpo de
Cristo, morreu aquela mulher pecadora, mas, estando unida com Ele na morte,
está unida com Ele na ressurreição também e, pelo poder da vida ressurreta, produz
fruto para Deus. A vida ressurreta do Senhor nela, transmite-lhe o poder de dar
satisfação a todas as exigências que a santidade de Deus requer dela. A Lei de
Deus não é anulada; é perfeitamente cumprida, porque o Senhor ressurreto vive
agora nela e a Sua vida agrada sempre perfeitamente ao Pai.
O que acontece quando uma
mulher se casa? Não continua a usar apenas o seu nome, mas também o do seu
marido, e não participa apenas do nome dele, como também das suas possessões.
Assim acontece quando estamos unidos com Cristo. Quando Lhe pertencemos, tudo o
que é Seu torna-se nosso. Com os Seus infinitos recursos à nossa disposição,
ficamos perfeitamente habilitados a satisfazer todas as Suas exigências.
Nosso fim é o
começo para Deus
Agora que estabelecemos o aspecto
doutrinai da questão, devemos descer a aspectos práticos, demorando-nos aqui
um pouco mais com o aspecto negativo, e guardando o positivo para o capítulo
seguinte. O que significa, na vida de cada dia, ser libertado do poder da Lei?
Significa que, daqui em diante, não vou fazer coisa alguma para Deus, não vou
fazer as minhas tentativas de agradar-Lhe. Talvez você proteste: "Que
doutrina! Que terrível heresia! Certamente não é isso que quer dizer".
Lembremo-nos, porém, de que
se eu tentar agradar a Deus "na carne", coloco-me imediatamente sob a
Lei. Quebrei a Lei, e ela pronunciou sobre mim a sentença de morte, e esta foi
executada, de maneira que, pela morte, eu - o "eu" carnal (Rm 7.14) -
fui libertado de todas as suas reivindicações. Há ainda uma Lei de Deus, e
agora há, sim, "um novo mandamento", que é infinitamente mais
exigente do que o velho, mas, graças a Deus, as suas exigências serão
satisfeitas, pois é Cristo quem agora as cumpre, é Cristo que opera em mim o
que é agradável a Deus. "Eu vim... para cumprir (a Lei)" - foram as
Suas palavras (Mt 5.17). Assim, Paulo, baseado na ressurreição, pode dizer:
"Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é quem
efetua em vós, tanto o querer como o realizar, segundo a Sua boa vontade"
(Fp 2.12,13).
É DEUS quem efetua em vós.
A libertação da Lei não significa que
estamos livres de fazer a vontade de Deus. Certamente não se trata de nós agora
sermos pessoas sem lei. Muito pelo contrário! O que significa, contudo, é que
estamos livres de fazer, por nós mesmos, o que Ele quer. Estando
plenamente persuadidos de que não podemos fazê-lo, cessamos de procurar
agradar a Deus no nível do homem velho. Tendo, finalmente, alcançado
aquela situação em que desesperamos em extremo de nós próprios, ao ponto de
abandonar nossas tentativas, colocando no Senhor toda a nossa confiança nesta matéria,
então poderemos ter a certeza de que Ele manifestará em nós a Sua própria vida
ressurreta.
Quanto mais cedo nós também
desistirmos de tentar, tanto melhor, porque se monopolizarmos a tarefa, não
deixaremos então lugar para o Espírito Santo. Mas, se dissermos: "Eu não o
farei; confiarei em Ti para que o faças por mim", verificaremos então que
um Poder mais forte do que nós próprios realizará a tarefa por nosso
intermédio.
Em 1923 encontrei um famoso
evangelista canadense. Numa minha mensagem, eu falara em termos semelhantes ao
que acima foi exposto, e, quando mais tarde caminhávamos de regresso à sua
casa, ele observou: "Poucas vezes soa hoje a nota de Romanos 7. E bom
ouvi-la de novo. O dia em que fui libertado da Lei, foi um dia de Céu sobre a
terra. Depois de ser crente durante vários anos, ainda procurava fazer esforços
para agradar a Deus, mas quanto mais tentativas fazia, tanto mais fracassava.
Considerava Deus o Ser mais exigente do Universo, e me considerava incapaz de
cumprir o menor dos Seus mandamentos. Certo dia, enquanto lia Romanos 7, a luz
se derramou sobre mim de repente, e percebi que fora libertado, não só do
pecado, mas também da Lei. Pulei de alegria e disse: "Senhor, Tu realmente
não fazes mais exigências de mim? Então, eu não preciso fazer coisa alguma
para Ti!"
As exigências de Deus não
foram alteradas, mas não somos nós quem vai enfrentá-las. Graças a Deus, Ele é
o Legislador no Trono e também o Guardador da Lei no meu coração. Aquele que
deu a Lei, Ele próprio a guarda. Ele faz as exigências, e também as
satisfaz. Enquanto fizermos as nossas tentativas, Ele não tem caminho livre
para fazer em nós coisa alguma. São as nossas próprias tentativas que nos levam
a fracasso após fracasso. Deus deseja nos ensinar que, por nós mesmos, nada
podemos fazer, e, até que reconheçamos plenamente esta verdade, não cessarão as
nossas decepções e desilusões.
Certo irmão que lutava para
alcançar a vitória observou: "Não sei por que sou tão fraco".
"O seu problema", respondi, "é que o irmão é fraco demais para
cumprir a vontade de Deus, mas não suficientemente fraco para abandonar a
tentativa de agradar-Lhe. Somente quando você estiver reduzido à fraqueza
extrema e chegar à convicção de que não pode fazer coisa alguma, é que Deus
passará a fazer tudo". Todos nós devemos chegar à conclusão que se
expressa assim: "Senhor, sou incapaz de fazer para Ti coisa alguma, mas
confio que Tu farás tudo em mim".
Certa vez passei algum tempo
com cerca de vinte irmãos num local onde, não havendo recursos adequados onde
estávamos hospedados para tomar banho, diariamente nos dirigíamos ao rio para
um mergulho. Numa destas ocasiões, um irmão teve cãibra numa perna, e vi que ia
afundar-se. Fiz sinal para que outro irmão, exímio nadador, se apressasse a
socorrê-lo. Fiquei perplexo ao ver que este não se mexeu, e gritei no meu
desespero: "Não vê que o homem está se afundando? " E os demais
irmãos em volta, tão agitados como eu, também gritavam vigorosamente. Nosso
bom nadador, porém, ainda nem se mexeu, como se fosse adiar ou recusar a
desagradável missão. Nesse ínterim, a voz do pobre irmão que se afogava, foi
se enfraquecendo, e os seus esforços foram ficando mais débeis. No meu coração
disse: "Odeio este homem! Deixa um irmão afogar-se perante os seus olhos,
sem ir em seu auxílio!"
Quando, porém, o homem estava
realmente se afundando, o nadador, com poucas e rápidas braçadas, encontrava-se
ao seu lado, e ambos chegaram a salvo à margem. Na primeira oportunidade, dei a
minha opinião: "Nunca vi qualquer cristão que amasse a sua vida tanto como
você! Pense, quanta aflição você poderia ter poupado àquele irmão se tivesse
considerado um pouco menos a sua própria pessoa, e pensado um pouco mais
nele". O nadador, porém, conhecia o seu trabalho melhor do que eu.
"Se eu tivesse ido mais cedo", respondeu, "ele ter-me--ia
agarrado tão fortemente que ambos nos teríamos afundado. Quando um homem está
se afogando, não pode ser salvo até que fique completamente exausto e deixe de
fazer o mínimo esforço para se salvar".
Você percebe? Quando nós abandonamos
o caso, Deus passa a Se encarregar dele. Fica esperando até que os
nossos recursos se esgotem e nada possamos fazer por nós próprios. Deus condenou tudo o que é da velha criação
e consignou-o à Cruz. A carne de nada aproveita. Qualquer tentativa de
fazer algo na carne, é virtualmente um repúdio à Cruz de Cristo. Deus nos
declarou aptos apenas para a morte. Quando realmente cremos nisto, confirmamos
o veredito de Deus, abandonando todos os nossos esforços carnais no sentido de
agradar-Lhe. Os nossos esforços neste sentido procuram negar a Sua declaração,
na Cruz, da nossa absoluta inutilidade. Se continuarmos nos nossos esforços próprios,
demonstraremos que não entendemos devidamente nem o que Deus exige de nós, nem
a origem do poder para cumprir as exigências.
Vemos a Lei e pensamos que
devemos satisfazer as suas exigências, mas precisamos ter em mente que, embora
a Lei seja em si mesma reta e justa, tudo falhará se ela for aplicada à pessoa
errada. O "desventurado homem" de Romanos 7, procurou satisfazer por si
mesmo a Lei de Deus, e foi essa a causa da sua aflição. O repetido emprego
da pequena palavra "Eu", neste capitulo, dá-nos a indicação da causa
do fracasso. "Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero,
esse faço" (Rm 7.19). Na mente deste homem havia um conceito fundamental
errado: pensava que Deus lhe pedia que guardasse a Lei, de modo que, evidentemente,
procurou guardá-la. Deus, porém, não exigia tal coisa da parte dele. Qual foi
o resultado? Longe de fazer o que agradava a Deus, acabou fazendo o que Lhe
desagradava. Nos seus próprios esforços para fazer a vontade de Deus, fazia
exatamente o oposto daquilo que sabia ser a Sua vontade.
Dou graças a
Deus
Romanos 6, trata do
"corpo do pecado", e Romanos 7 do "corpo desta morte" (Rm
6.6; 7.24). No capítulo 6, trata-se da questão do pecado; no capitulo 7, a questão
diz respeito à morte. Qual é a diferença entre o corpo do pecado e o corpo da
morte? Em relação ao pecado (ou seja, a tudo aquilo que desagrada a Deus) eu tenho
um corpo de pecado - o que quer dizer um corpo ativamente comprometido no
pecado. Em relação à Lei de Deus (ou seja, aquilo que expressa a vontade de
Deus), tenho um corpo de morte. A minha atividade no pecado faz com que meu
corpo seja um corpo de pecado; o meu fracasso no cumprimento da vontade de Deus
faz com que meu corpo seja um corpo de morte. Em relação a tudo quanto é mau,
mundano e satânico, eu sou inteiramente positivo na minha natureza; no que diz
respeito a tudo quanto se relaciona com a santidade, o Céu, e Deus, sou, porém,
totalmente negativo.
Você já descobriu esta
verdade na sua vida? Não se trata de descobri-la meramente em Romanos 6 e 7. Já
descobriu que você transporta consigo o estorvo de um corpo sem vida, no que
diz respeito à vontade de Deus? Você não sente dificuldade em falar acerca das
coisas mundanas, mas quando procura falar acerca do Senhor, sua língua fica como
que presa; quando quer orar, sente-se sonolento; quando se esforça para fazer
algo para o Senhor, não se sente bem. Pode fazer tudo, exceto o que está
relacionado com a vontade de Deus. Há algo neste corpo que não se harmoniza com
a vontade de Deus.
O que significa a morte?
Podemos ilustrá-la com um versículo bíblico: "Eis a razão por que há entre
vós muitos fracos e doentes, e não poucos que dormem" (I Co 11.30). A
morte é fraqueza extrema, significa que se está totalmente fraco e destituído
de forças. Ter um corpo de morte, no que diz respeito à vontade de Deus,
significa que sou tão fraco no Seu serviço que fico reduzido a uma posição de
horrível desamparo. "Desventurado homem que sou! quem me livrará do corpo
desta morte?" clamou Paulo, e é bom que alguém clame assim diante de Deus,
porque aos Seus ouvidos nada soa mais harmonioso. É o grito mais bíblico e
espiritual que um homem pode emitir. Só quem está convicto da sua
impossibilidade de fazer coisa alguma, e que desistiu de tomar novas resoluções
por si mesmo, poderá clamar assim a Deus. Até chegar a tal ponto, todas as
vezes que falhava, tornava uma nova resolução e redobrava o emprego da sua
força de vontade. Finalmente, descobre que dão há qualquer vantagem em
continuar a usar sua própria força mental, e grita, desesperado:
"Desventurado homem que sou!" Como um homem que subitamente acorda
dentro de um edifício incendiado, grita por socorro, porque chegou a uma
situação em que se desespera de si mesmo.
Você já desistiu de si mesmo,
ou ainda tem a esperança de que, se ler e orar mais se tornará um cristão melhor?
Deus nos livre de sugerir que a leitura da Bíblia e a oração são coisas
erradas, no entanto, é um erro confiar mesmo nelas para alcançar a vitória. O
nosso socorro vem dAquele que é o alvo de tal leitura e de tal oração. A nossa
confiança deve estar unicamente em Cristo. Felizmente, o "desventurado
homem" vai além de deplorar a sua triste condição — faz uma bela
pergunta: "Quem me livrará? " "Quem? " Até aqui, ele
procurava alguma coisa; agora, a sua esperança está numa Pessoa. Até aqui
procurou, dentro de si, uma solução para o seu problema; agora, olha para além
de si mesmo, para o Salvador. Não continua a operar com seu esforço próprio;
toda a sua expectativa agora se coloca no Outro.
Como obtivemos o perdão dos
pecados? Foi por meio da leitura, da oração, das ofertas, e de outras coisas
semelhantes? Não, olhamos para a Cruz, crendo no que o Senhor Jesus fizera; e a
libertação do pecado vem a ser nossa própria experiência pelo mesmo princípio;
a mesma regra se aplica também ao assunto de agradarmos a Deus. Procurando o
perdão, olhamos para Cristo na Cruz; buscando a libertação do pecado e poder
para fazer a vontade de Deus, olhamos para Cristo em nosso coração. Em relação
à primeira, dependemos do que Ele fez; em relação à segunda, dependemos do que
Ele fará em nós; em ambos os casos, dependemos exclusivamente dEle. É Ele que
opera tudo, somente Ele.
Na época em que foi escrita a
Epístola aos Romanos, um assassino era punido de forma terrível e estranha. O
corpo morto do assassinado ligava-se ao corpo vivo do assassino, cabeça com
cabeça, mão com mão, pé com pé, e o homem vivo ficava amarrado ao morto até à
sua própria morte. O assassino podia ir aonde desejasse mas, aonde quer que
fosse, teria que transportar o cadáver do homem que matara. Haveria castigo
mais terrível? Esta, no entanto, é a ilustração que Paulo agora emprega. É como
se estivesse ligado a um cadáver do qual fosse incapaz de libertar-se. Onde
quer que ele vá, sente-se embaraçado por este fardo terrível. Finalmente, não
pode suportá-lo mais e grita: "Desventurado homem que sou! Quem me
livrará?" É então que, graças a uma iluminação súbita, o seu grito de
desespero se transforma em cântico de louvor. Ele achou a resposta à sua
pergunta, e exclama: "Graças a Deus, por Jesus Cristo nosso Senhor"
(Rm7.25).
Sabemos que nossa
justificação nos foi dada mediante a graça do nosso Senhor Jesus Cristo, sem
qualquer esforço da nossa parte, mas pensamos que a santificação depende dos
nossos próprios esforços. Sabemos que podemos receber o perdão mediante
dependermos inteiramente do Senhor; contudo, cremos que podemos obter a libertação
do poder do pecado fazendo alguma coisa por nós mesmos. Receamos que, se nada
fizermos, nada acontecerá. Depois da salvação, o velho ato do
"fazer" reafirma-se e começamos de novo aqueles nossos antigos esforços
próprios. Então, a Palavra de Deus soa de novo ao nosso coração: "Está
consumado!" (João 9.30). Ele fez tudo, na Cruz, para alcançar o nosso
perdão, e Ele fará tudo, em nós, para realizar a nossa libertação. Em ambos os
casos, é Ele que opera. "É Deus quem efetua em vós".
As primeiras palavras do
homem libertado são preciosíssimas — "Graças a Deus". Se alguém lhe
der urn copo de água, você agradecerá à pessoa que lho deu, e não a qualquer
outra. Por que disse Paulo, "Graças a Deus"? Porque foi Deus Quem
tudo operou. Se tivesse sido Paulo quem fez a obra, teria dito: "Graças a
Paulo". Ele porém percebeu que Paulo era um "desventurado homem"
e quef somente Deus podia satisfazer a sua necessidade; é por isso que diz:
"Graças a Deus". Deus deseja fazer tudo, pois Ele deve ter toda a
glória. Se fizermos uma parte do trabalho, então alcançaremos uma parte da
glória; mas Deus recebe para Si toda a glória, porque a obra total é dEle, do
começo até ao fim.
O que foi dito neste capitulo
pareceria negativo e sem valor prático se parássemos aqui, como se a vida
cristã fosse questão de ficarmos assentados à espera de algum acontecimento. É
evidente que a realidade é algo bem diferente, e todos os que realmente vivem
esta vida sabem que se trata da fé dinâmica, ativa e positiva em Cristo, de um
princípio de vida inteiramente novo — a lei do Espírito da vida. Vamos agora,
no capítulo seguinte, examinar os efeitos, em nós, deste novo princípio de
vida.
10
A
vereda do progresso:
andando
no Espírito
Passando agora a Romanos 8,
podemos, primeiramente, resumir em duas frases o argumento da nossa segunda
divisão da Epístola (5.12 — 8.39), cada um oferecendo um contraste e
assinalando um aspecto da experiência cristã:
Rm 5.12 a 6.23: "Em
Adão" e "em Cristo".
Rm 7.1 a 8.39: "Na
carne" e "no Espírito".
Precisamos entender as
relações existentes entre estas quatro coisas. As duas primeiras são
"objetivas" e expressam a nossa "posição" — primeiramente,
como éramos por natureza e, em segundo lugar, como somos agora pela fé na obra
redentora de Cristo. As duas últimas são "subjetivas" e dizem
respeito ao nosso andar como questão de experiência prática. A Escritura
nos mostra claramente que as duas primeiras nos oferecem apenas um aspecto do
quadro, e que as outras duas são necessárias para completá-lo. Pensamos que é
suficiente estar "em Cristo" mas agora aprendemos que também devemos
andar "no Espírito" (Rm 8.9). A freqüência com que aparece a
expressão "o Espírito" na primeira parte de Rm 8, contribui para
sublinhar esta nova e importante lição da vida cristã.
A carne e o Espírito
A carne está vinculada a
Adão; o Espírito está vinculado a Cristo. Considerando agora solucionada a
questão de estarmos em Adão ou em Cristo, devemos perguntar a nós mesmos: Estou
vivendo na carne ou no Espírito?
Viver na carne é fazer alguma
coisa da minha própria parte, como estando em Adão. Consiste em derivar forças
da velha fonte da vida natural que dele herdei, pelas quais desfruto na
experiência de toda aquela capacidade, que todos' nós temos achado tão eficaz,
para pecarmos. Ora, o mesmo princípio se aplica àquele que está em Cristo: para
desfrutar, na prática e na experiência, de tudo o que é meu por causa de estar
nEle, devo aprender a andar no Espírito. É um fato histórico que, em Cristo, o
meu velho homem foi crucificado, é um fato presente que eu sou abençoado
"com toda bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo" (Ef
1.3); mas, se eu não viver no Espírito, a minha vida poderá passar a ser uma
total contradição, por não expressar na prática tudo o que é meu por causa de
estar em Cristo. Reconheço que estou em Cristo, mas tenho também que encarar a
verdade de que o meu antigo mau gênio ainda está em evidência.
Qual é o problema? É que
considero a verdade apenas de maneira objetiva, e não também subjetivamente,o
que acontecerá apenas na medida em que vivo no Espírito.
Não somente estou em Cristo:
Cristo também está em mim. E assim como, fisicamente, um homem não pode viver e
trabalhar debaixo da água mas somente no ar, assim, espiritualmente, Cristo
habita e Se manifesta não na "carne" mas no Espírito. Portanto, se eu
viver "segundo a carne", verifico que minha participação em Cristo
fica como que em suspenso no meu ser. Embora eu realmente esteja em Cristo, se
viver na carne, pelas minhas próprias forças e sob minha própria direção -
então, na prática e na experiência, verifico, consternado, que é alguma coisa
de Adão que se manifesta em mim. Se eu quiser conhecer na experiência tudo
quanto possuo em Cristo, então terei que aprender a viver no Espírito.
Viver no Espírito significa
que eu confio no Espírito Santo para fazer em mim o que não posso fazer por mim
mesmo. Esta vida é completamente diferente da vida que eu viveria naturalmente
por mim mesmo. Cada vez que eu deparo com uma nova exigência do Senhor, olho
para Ele, a fim de que Ele faça em mim aquilo que de mim requer. Não se trata
de tentar, mas de confiar; não consiste em lutar, mas em descansar nEle. Se
tiver um temperamento impulsivo, pensamentos impuros, a língua desregrada, ou
um espírito crítico, não me proporei modificar-me mediante certo esforço meu,
mas, considerando-me morto, em Cristo, para estas coisas, contarei com o Espírito
de Deus para que Ele produza em mim a pureza ou a humildade ou a mansidão
necessária. É isto que significa: "Aquietai-vos e vede o livramento do
SENHOR, que hoje vos fará" (Êx 14.13).
Alguns de nós, sem dúvida, já
tivemos uma experiência análoga à seguinte: fomos solicitados a visitar certa
pessoa que sabíamos ser de natureza pouco amigável. Todavia, confiamos que o
Senhor nos dirigisse. Antes de sair, dissemos-Lhe que, em nós mesmos, falharíamos,
e solicitamos da parte dEle os recursos que nos seriam necessários. Então, para
surpresa nossa, não nos sentimos nada irritados, embora a pessoa em questão
estivesse longe de ser amável e simpática. No regresso, revimos a experiência,
e maravilhamo-nos por termos permanecido tão calmos, e perguntamo-nos se, na
próxima vez, estaríamos tão serenos. Estávamos perplexos e buscávamos uma
explicação. Esta é a explicação: o Espírito Santo nos dirigiu em toda
aquela experiência.
Infelizmente, só temos este
tipo de experiência de vez em quando, mas deveria ser uma experiência
constante. Quando o Espírito Santo toma conta, não há necessidade de esforços
da nossa parte. Não se trata de nos dominar através da nossa força de vontade
para obter, a duras penas, uma gloriosa vitória. Não, onde se manifesta a
verdadeira vitória, não há esforço carnal, pois é o próprio Senhor Quem nos
conduz maravilhosamente.
O alvo da tentação é sempre
nos levar a fazer alguma coisa. Durante os primeiros três meses da guerra
japonesa na China, perdemos grande número de tanques, e ficamos assim
impossibilitados de enfrentar os tanques japoneses até que se divisou o
seguinte plano. Um único tiro seria disparado contra um tanque japonês por um
dos nossos atiradores especiais emboscado. Após um lapso de tempo, seguir-se-ia
um segundo tiro; depois, após novo silêncio, outro; até que o condutor, ansioso
por localizar a origem da perturbação, colocaria a cabeça para fora, olhando em
derredor. O tiro seguinte, cuidadosamente apontado, acabaria com ele.
Enquanto o homem permanecia
protegido, estava em perfeita segurança. Todo o plano foi forjado com o fim de
pô-lo a descoberto. Do mesmo modo, as tentações de Satanás não se destinam,
primariamente, a fazer-nos cometer algo especialmente pecaminoso, mas têm por fim
levar-nos a agir com nossa própria energia; e logo que ensaiamos um passo fora
do nosso refúgio, a fim de fazermos qualquer coisa nessa base, ele alcança
vitória sobre nós. Se não nos mexemos, se não sairmos da cobertura de Cristo
para o ambiente da carne, ele não poderá nos atingir.
O caminho divino da vitória
não nos permite fazer seja o que for sem Cristo. E isto porque, logo que nos
movemos, corremos perigo, visto que as nossas inclinações materiais nos levam
na direção errada. Onde devemos, então, procurar auxílio? Consideremos agora Gálatas
5.17: "A carne milita contra o Espírito e o Espírito contra a carne".
Noutras palavras, a carne não luta contra nós, mas contra o Espírito Santo,
"porque são opostos entre si", e é Ele, e não nós, que enfrenta a
carne e trata com ela! Qual é o resultado? "Para que não façais o que porventura
seja do vosso querer".
Penso que às vezes entendemos
em sentido errado a última afirmação deste versículo. Nós, pela nossa natureza,
faríamos tudo aquilo que nossos instintos ditam, independentemente da vontade
de Deus. Quando, porém, deixamos de agir por nós mesmos, o Espírito Santo recebe
liberdade para enfrentar em nós a nossa carne, e para solucionar o problema;
quando abrirmos mão das nossas inclinações, da nossa carreira, dos nossos
planos, acharemos a nossa satisfação em Seu plano perfeito. Pelo que
temos o princípio: "Andai no Espírito, e jamais satisfareis à
concupiscência da carne" (Gl 5.16). Se andarmos no Espírito, se andarmos
por fé no Cristo ressurreto, podemos verdadeiramente ficar alheios, enquanto o
Espírito ganha novas vitórias, cada dia, sobre a carne; foi por isso que Ele
nos foi concedido. A nossa vitória reside em nos escondermos em Cristo,
contando, com confiança singela, no Seu Santo Espírito para vencer, em nós, as
nossas concupiscências carnais, pelos novos desejos que Ele nos dá. A Cruz nos
foi dada para a nossa salvação; o Espírito nos foi dado para fazer a salvação
frutificar em nós. Cristo ressurreto é assunto e base da nossa salvação;
Cristo nos nossos corações, pelo Espírito, é o poder da mesma.
Cristo é a
nossa vida
"Graças a Deus por Jesus
Cristo nosso Senhor" — esta exclamação de Paulo é fundamentalmente a mesma
que faz em Gálatas 2.20: "Já não sou eu que vivo, mas Cristo vive
em mim". Vimos quão proeminente é a palavra "Eu" em todo o
argumento que ele desenvolve em Romanos 7, culminando no grito de agonia:
"Desventurado que eu sou!" Segue-se depois a exclamação de
livramento: "Graças a Deus... Jesus Cristo!" e vê-se com
clareza que a descoberta que Paulo fez foi esta: a vida que vivemos é a vida
de Cristo somente. Pensamos que a vida cristã é uma vida transformada, mas,
na realidade, é uma "vida substituída" — Cristo é o nosso
Substituto, dentro de nós. "Já não sou eu que vivo, mas Cristo vive em
mim". Esta vida não é algo que nós tenhamos que produzir. É a própria vida
de Cristo reproduzida em nós.
Quantos crentes crêem na
"reprodução", neste sentido, como algo mais do que a regeneração? A
regeneração significa que a vida de Cristo é implantada em nós pelo Espírito
Santo quando nascemos de novo. A "reprodução" vai mais longe:
significa que essa vida nova se desenvolve e se torna progressivamente
manifesta em nós, até que a própria semelhança de Cristo começa a ser produzida
nas nossas vidas. É o que Paulo quer dizer quando fala das suas "dores de
parto" pelos Gálatas, "até ser Cristo formado em vós" (Gl 4.19).
Vou ilustrar este princípio
com outra história. Cheguei certa vez, na América, à casa de um casal salvo,
que me pediu para orar em seu favor. "Ultimamente estamos num estado
lastimável; ficamos irritados e zangados muitas vezes ao dia. Queremos pedir
que Cristo nos dê paciência", foi a explicação deles. Perguntei-lhes se
já oraram a este respeito. "Sim, já o fizemos", responderam.
"Mas Deus lhes respondeu?" "Não". "Sabem por quê? Porque
não é paciência que lhes falta". A esposa, com ares de espanto, disse:
"O que? Não necessitamos de paciência, nós que andamos nervosos o dia
inteiro? O que quer dizer com isso? " Respondi-lhe: "Não é de
paciência que necessitam, mas de Cristo".
Deus não me dará humildade,
ou paciência, ou santidade, ou amor, como dons separados da Sua graça. Ele não
é um retalhista que nos dispensa graça em doses, medindo um pouco de paciência
para os impacientes, algum amor para os que não o têm, alguma mansidão para os
arrogantes, em quantidades que tomamos e usamos como uma espécie de capital.
Ele nos deu um único Dom para satisfazer todas as nossas necessidades — o Seu
Filho Jesus Cristo, e na medida em que lhe permito viver a Sua vida em mim,
Ele, em meu lugar, será humilde e amoroso e tudo o mais que necessito.
"...Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está no Seu Filho. Aquele que
tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o Filho de Deus não tem a vida"
(I João 5.12). A vida de Deus não nos é dada como coisa separada; é no Filho
que a recebemos. É "vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor" (Rm
6.23). A nossa relação com o Filho é a nossa relação com a vida.
É coisa abençoada descobrir a
diferença entre as graças cristãs e Cristo; conhecer a diferença entre a
mansidão e o próprio Cristo, entre a paciência e Cristo, entre o amor e Cristo:
"Cristo Jesus... se nos tornou da parte de Deus sabedoria, e justiça, e
santificação, e redenção" (I Co 1.30).
O conceito comum de
santificação é que a vida, em todos os seus aspectos, deve ser santa; isto,
porém, é apenas o fruto da santidade. A santidade é Cristo. É o Senhor Jesus
sendo transferido para nós, afim de sermos o que devemos ser, o amor, a
humildade, o poder, o domínio próprio. Hoje há um apelo à paciência. Então, é
Ele a nossa paciência. Amanhã, há um clamor pela pureza: então, é Ele a nossa
pureza. É Ele, pessoalmente, a resposta a toda a necessidade. É por isso que
Paulo fala do "fruto do Espírito", como se tratando de um só (Gl 5.
22) e não de "frutos" como características separadas. Deus nos deu o
Seu Espírito Santo, e quando precisamos de amor, o fruto do Espírito nos é dado
em forma de amor; quando nos falta alegria, o fruto do Espírito é gozo. É
sempre verdade, não importa qual seja a deficiência pessoal, ainda que nos
falte um sem número de coisas, Deus tem a resposta suficiente a cada
necessidade humana: é Seu Filho Jesus Cristo.
Como podemos conhecer mais de
Cristo a este propósito? Somente tendo sempre mais consciência do nosso
mister. Alguns receiam que isto revelará as suas próprias deficiências, e assim
nunca aceitam este processo de crescimento, esquecendo-se que isto significa
crescer na graça, e que esta graça significa que Deus faz algo para nós.
Todos temos o mesmo Cristo habitando dentro de nós, e a revelação de qualquer
deficiência nossa apenas servirá a nos levar a depender espontaneamente dEle,
confiados em que Ele viverá a Sua vida em nós de modo a suprir aquela
necessidade. Maior capacidade de recepção significa maior usufruto do
suprimento de Deus Cada ato de abrir mão dos nossos esforços próprios numt.
atitude de confiante dependência de Cristo, é mais um passo na conquista do
terreno. "Cristo — a minha vida" é o segredo de conquistas sempre
maiores.
Já falamos, entre outras
coisas, da diferença entre o esforço próprio e a confiança; a diferença entre
estas atitudes é tão grande como a que há entre o Céu e o Inferno. Recusar-me
a agir, depender dEle para atuar, para então entrar com firmeza e alegria na
ação por Ele iniciada, longe de ser mera passividade, é a vida na sua plenitude
de atividade, em comunhão com o Senhor. Recebo dEle a vida, tomo-O para ser a
minha própria vida, e permito que Ele viva manifestamente a Sua vida em mim.
A lei do Espírito
de vida
"Agora, pois, já nenhuma
condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne,
mas segundo o Espírito. Porque a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te
livrou da lei do pecado e da morte" (Rm 8.1,2).
É no capítulo 8 que Paulo nos
apresenta pormenores do aspecto positivo da vida no Espírito. "Agora,
pois, nenhuma condenação há", diz ele, e não há dúvida de que a condenação
foi satisfeita pelo sangue, por meio de que achamos paz com Deus e a salvação
da ira (Rm 5.1,9). Há, todavia, duas espécies de condenação: a diante de Deus e
a perante mim próprio (assim como os dois tipos de paz que já comentamos) e a
segunda pode às vezes nos parecer mais terrível do que a primeira. Quando percebemos
que o sangue de Cristo satisfez a justiça de Deus, então sabemos que os nossos
pecados foram perdoados, não havendo mais condenação para nós diante de Deus.
Posso, todavia, ainda sofrer derrotas, e o conseqüente sentimento de condenação
interior pode ser muito real, conforme revela Romanos 7. Se, porém, eu aprendi
a viver por Cristo, com a minha vida, então já aprendi o segredo da vitória
e, graças a Deus, já nenhuma condenação há para mim. "O pendor do Espírito
é para a vida e paz" (Rm 8.6), e isto entra na minha experiência na medida
em que aprendo a andar no Espírito. Com paz no coração, não tenho ocasião de
me sentir condenado. Só tenho motivo de louvar Aquele que me conduz de vitória
a vitória.
O que, então, havia por
detrás do meu sentimento de condenação? Não foi a experiência de derrota e o
sentimento da minha própria incapacidade de remediar tal situação? Antes de
reconhecer que Cristo é a minha vida, eu labutava sob um sentimento constante
de frustração; minhas limitações me acompanhavam a cada passo; em qualquer
situação, sentia minha própria incapacidade. Sempre clamava: "Não posso
fazer isto! Não posso fazer aquilo!" Apesar das minhas repetidas
tentativas verificava que eu "não podia agradar a Deus" (Rm 8.8). Em
Cristo, no entanto, não existe o "Eu não posso". Pelo contrário,
agora: "Tudo posso nAquele que me fortalece" (Fp4.13).
Como pode Paulo ter tanta
coragem? Em que se baseia para dizer que agora está livre de limitações e que
agora tudo pode fazer? Eis a resposta: "Porque a lei do Espírito da vida
em Cristo Jesus te livrou da lei do pecado e da morte" (Rm 8.2). Por que
não há mais condenação? É porque uma lei chamada "a lei do Espírito da
vida" se demonstrou mais forte do que outra lei chamada "a lei do
pecado e da morte". O que são estas leis? Como operam? Qual é a diferença
entre o pecado e a lei do pecado e entre a morte e a lei da morte?
Em primeiro lugar, devemos
definir o que é uma lei. A rigor, uma lei é uma generalização examinada até que
se prove não haver exceção. É alguma coisa que acontece repetidamente, e ao
acontecer, é sempre de maneira já observada. Podemos ilustrar este princípio
por meio da lei natural da gravidade, que todos conhecemos. Se deixar cair o
meu lenço em São Paulo, cairá no chão. É este o efeito da gravidade, e o mesmo
acontece se o deixar cair em Santa Catarina ou em Manaus, porque os mesmos
resultados se produzem em qualquer lugar em que o deixar cair. Sempre que
prevalecem as mesmas condições, observam-se os mesmos efeitos. Assim se
manifesta a lei da gravidade.
O que diremos agora da lei do
pecado e da morte? Se alguém faz um comentário desagradável a meu respeito,
imediatamente alguma coisa dentro de mim se perturba. Isto não é lei, é pecado.
Mas se, quando diferentes pessoas fazem observações ásperas a meu respeito, a
mesma coisa se agita e perturba o meu íntimo, então descubro uma lei interior —
a lei do pecado.
Como a lei da gravidade, é
alguma coisa constante. Opera sempre do mesmo modo. E o mesmo acontece também
com a lei da morte. A morte é a fraqueza que chega ao extremo. A fraqueza é
"eu não posso". Ora, se quando procuro agradar a Deus, em determinado
assunto, verifico que não posso, e se quando procuro agradá-Lo em outra coisa,
e novamente verifico que não consigo, então discirno a operação de uma lei.
Não é apenas pecado que há em mim, e, sim, uma lei de pecado; não há apenas
morte, e, sim, uma lei de morte.
A gravidade não é só uma lei
no sentido de que é constante, não admitindo exceções, mas é também uma lei
"natural" — não é matéria de discussão, mas de descoberta. A lei
está presente, e o lenço cai "naturalmente", por si mesmo, sem
qualquer auxílio da minha parte. E a lei descoberta pelo homem, em Rm 7.23, é
exatamente igual aquela. É uma lei de pecado e de morte, que se opõe àquilo que
é bom, e que paralisa a vontade do homem quanto ao fazer o bem. Ele peca
"naturalmente", segundo a "lei do pecado" nos seus membros.
Ele quer ser diferente, mas a lei que nele opera é implacável e não há vontade
que possa resistir a ela. Isto nos leva a perguntar: Como posso eu ser
libertado da lei do pecado e da morte? Necessito de libertação do pecado, e
ainda mais, de libertação da morte; acima de tudo, careço de libertação da lei
do pecado e da morte. Como posso ficar livre da constante repetição de fraqueza
e fracasso? Acabamos de considerar a lei da gravidade, para então aplicá-la à
resposta a esta pergunta.
Como pode ser anulada a lei
da gravidade? Em relação ao meu lenço, aquela lei atua de maneira evidente,
puxando-o para baixo. Todavia, apenas tenho que colocar a mão debaixo do lenço
para que ele não caia. Por que? A lei ainda está presente. Eu não interfiro com
a lei da gravidade, e nem sequer posso. Então, por que não cai o meu lenço ao
chão? Porque há um poder que o impede de cair. A lei continua em vigor, mas há
outra, superior à primeira, que opera para sobrepujá-la, ou seja, a lei da
vida. A gravidade pode exercer seu esforço máximo, mas o lenço não cairá,
porque outra lei, operando contra a lei da gravidade, o sustenta. Todos temos
visto uma árvore que certa vez era uma pequena semente caída pelos
interstícios de uma calçada, e que cresceu até que pesados blocos foram
levantados pelo poder da vida dentro dela. É isto que queremos dizer ao falar
do triunfo de uma lei sobre outra.
Do mesmo modo, Deus nos
liberta de uma lei, introduzindo outra. A lei do pecado e da morte continua a
existir, mas Deus fez operar outra lei - a lei do Espírito da vida em Cristo
Jesus, e esta lei é suficientemente forte para nos libertar da lei do pecado e
da morte. É a lei de vida em Cristo Jesus - a vida ressurreta que nEle
encontrou a morte, em todas as suas formas, e triunfou sobre ela, Ef 1.19,20;
agora, é Cristo que habita nos nossos corações, na pessoa do Seu Santo
Espírito, e, se nos entregarmos a Ele, verificaremos que Ele nos guardará da
velha lei. Aprenderemos o que significa ser guardados, não pelo nosso próprio
poder, mas "pelo poder de Deus"(IPe 1.5).
A manifestação
da lei da vida
Nem mesmo os cristãos mais
experimentados entendem quão grande é o papel que a vontade desempenha nas
suas vidas. Isto constitui parte do problema de Paulo em Romanos 7. A sua
vontade era boa, mas todas as suas ações contradiziam-na e, quanto mais ele
fazia fortes resoluções no sentido de agradar a Deus, tanto mais a sua vontade
o traía. "Eu quero fazer o bem", mas "sou carnal,
vendido sob o pecado". Como um carro sem gasolina, que tem que ser
empurrado, e que pára logo que é deixado só, muitos cristãos procuram vencer
pela força da vontade, e passam a achar a vida cristã amargamente exaustiva.
Esforçam-se por ser o que não são, o que é pior do que procurar fazer a água
correr colina acima, porque, afinal, o ponto mais alto que a vontade pode
alcançar é o da boa vontade (Mt 26.41).
Se nossa vida cristã nos leva
a exercer tanto esforço, ainda não conhecemos a natureza dela. Nossa língua
materna é falada sem esforços; a força da vontade apenas se exerce quando se
trata de fazer coisas que não fazemos naturalmente. Por um tempo,
conseguimos fazer assim, mas a lei do pecado e da morte acaba vencendo. Talvez
possamos dizer: "O querer está em mim e faço o que é bom durante uma
quinzena", mas, finalmente, teremos que confessar: "Não consigo
realizar o bem".
Por que, então, as pessoas
procuram agradar a Deus pela força da sua vontade? Ou nunca nasceram de novo e
neste caso não têm vida nova a que recorrer; ou nasceram de novo, possuem a
vida nova, mas ainda não aprenderam a confiar nela. É esta falta de
entendimento que (*), colocando-nos em situação de quase abandonar a esperança
de que haja coisa melhor para nós.
Não é nossa falta de crer
devidamente que significa que a frágil vida que intermitentemente
experimentamos seja tudo quanto Deus nos ofereceu. Rm 6.23 declara: "o dom
gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus nosso Senhor", e em Rm
8.2 lemos: "a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus" veio em nosso
auxílio. Assim, Rm 8.2 não fala de um novo dom, e sim, da vida já referida em
Rm 6.23. Noutras palavras, é uma nova revelação daquilo que já temos. Isto
é importante: não é algo novo que recebemos da mão de Deus, mas uma nova revelação
do que Ele já nos deu. É uma nova descoberta da obra já realizada por Cristo,
já que o verbo "livrou" está no passado. Se eu realmente crer e
colocar nEle a minha fé, não haverá, no meu caso, qualquer necessidade de
Romanos 7 se repetir.
Se abdicarmos das nossas
próprias vontades e confiarmos nEle, não cairemos por terra, e sim, ficaremos
no ambiente de uma lei diferente, a lei do Espírito de vida, porque Deus
nos deu não só a vida, como também uma lei de vida. Assim como a lei da
gravidade é uma lei natural, e não o resultado da legislação humana, assim também
a lei da vida é uma lei "natural", semelhante, em princípio, à lei
que mantém em funcionamento o nosso coração, ou que dirige o movimento das
nossas pálpebras. Não é necessário pensarmos nos olhos, nem resolvermos
pestanejar várias vezes para conservá-los limpos; muito menos podemos fazer com
que a nossa vontade atue sobre o coração. Realmente, se o fizéssemos, podíamos
causar-lhes mais prejuízo do que auxiliá-lo. Não, enquanto tiver vida, o
coração trabalhará espontaneamente. As nossas vontades apenas estorvam a lei da
vida. Descobri esta verdade da seguinte maneira:
Habitualmente sofria de
insônia; certa vez, após várias noites sem dormir, depois de ter orado muito
sobre o assunto e de ter esgotado todos os meus recursos, confessei finalmente
a Deus que a falta devia ser minha e pedi-Lhe que me explicasse o que havia de
errado. A Sua resposta foi: "Crê nas leis naturais". O sono é uma lei
tanto quanto a fome, e passei a notar que, embora nunca me ocorresse afligir-me
quanto a sentir fome ou não, estava aflito e inquieto quanto a ter sono.
Procurava ajudar a natureza, o que é o problema principal de muitas pessoas
que sofrem de insônia. Assim, passei a confiar em Deus e na lei divina da
natureza, e dormi bem.
Não devemos ler a Bíblia?
Evidentemente que sim, senão a nossa vida espiritual sofrerá. Mas isto não
significa que devemos nos forçar a lê-la. Há em nós uma nova lei que nos faz
sentir fome dela. Em tais circunstâncias, meia hora pode ser mais proveitosa do
que cinco horas de leitura imposta. O mesmo se pode dizer das nossas ofertas,
da nossa pregação, do nosso testemunho. A pregação forçada pode resultar em
anunciar-se com coração frio um evangelho ardente, e todos sabemos o que quer
dizer "caridade fria".
Se entregarmos a nossa vida à
nova lei, teremos menos consciência da lei velha, que, embora continue a
existir, já não nos governa, e já não somos presa sua. É por isso que o Senhor
diz em Mateus 6: "Observai as aves... considerai os lírios". Se
pudéssemos perguntar às aves se não têm medo da lei da gravidade, talvez
diriam: "Nunca ouvimos falar em Newton, e nada sabemos acerca da sua lei.
Voamos porque é essa a lei da nossa vida". Não somente têm a capacidade
de voar, como possuem uma vida cuja lei habilita-as a vencer a lei da
gravidade de maneira absolutamente espontânea. A gravidade permanece, mas
enquanto as aves vivem, vencem-na, e é a vida que nelas há que sobrepuja seu
conhecimento das leis.
Deus tem sido verdadeiramente
gracioso para conosco. Deu-nos esta nova lei do Espírito, e para
"voarmos" não é mais questão da nossa vontade e, sim, da Sua vida. Já
notou como é difícil tornar paciente um cristão impaciente? Exigir paciência
da parte dele é quase fazê-lo sofrer um ataque de depressão. Deus, porém,
nunca mandou esforçar-nos por ser o que não somos naturalmente, a fim de
procurarmos aumentar a nossa estatura espiritual. A aflição e a inquietação
talvez possam diminuir a altura de um homem, mas nunca poderão aumentá-la.
"Não andeis ansiosos...
Considerai como crescem os lírios do campo". Desta maneira, Cristo
quer chamar a nossa atenção à nova lei de vida em nós. Oxalá possamos ter um
novo conceito da vida que nos pertence!
Que preciosa descoberta é
esta! Pode fazer de nós homens completamente novos, porque opera nas coisas mínimas
como nas máximas. Corrige-nos quando, por exemplo, estendemos a mão para um
livro que se encontra no quarto de alguém, lembrando-nos que não pedimos licença
e por isso não temos o direito de fazê-lo. Não podemos abusar dos direitos dos
outros, nos ensina o Espírito Santo.
Tomemos o exemplo do falar
demais. Você é uma pessoa de muitas palavras? Quando está no meio de outras
pessoas, diz para si mesmo: "O que devo fazer? Como crente que quer
glorificar o nome do Senhor, devo controlar a minha língua. Portanto, vou
fazer um esforço especial para me conter? " E durante uma hora ou duas
alcança êxito — até que, por um pretexto qualquer, perde o domínio próprio e,
antes que haja consciência do que está acontecendo, acha-se de novo em dificuldades
com a sua língua tagarela. Sim, não tenhamos dúvidas quanto à inutilidade da
vontade quanto a isso. Se eu o exortasse a exercer a sua vontade neste assunto,
estaria oferecendo-lhe a religião vã deste mundo, e não a vida que há em Cristo
Jesus. Uma pessoa tagarela, afinal de contas, continua a sê-la mesmo quando se
conserva calada o dia todo, porque a lei "natural" da tagarelice ainda
a governa, assim como o pessegueiro continua sendo pessegueiro mesmo quando
não está produzindo pêssegos. Como crentes, porém, descobrimos uma nova lei em
nós, a lei do Espírito da vida, que transcende tudo o mais e que já nos
libertou da "lei" da nossa loquacidade. Se, crendo na Palavra do
Senhor, nos rendermos àquela nova lei, ela nos ensinará quando devemos
interromper a nossa conversa — ou nem sequer iniciá-la! — e nos dará poder para
fazê-lo. Assim, você pode ir à casa do seu amigo e passar algumas horas ou até
alguns dias com ele, sem experimentar dificuldades. De regresso, dará graças a
Deus por esta lei da vida.
A vida cristã é esta vida espontânea. Manifesta-se
em amor pelos que não são agradáveis - pelo irmão de quem, no plano de vida
natural, não gostaríamos e que certamente não amaríamos. Opera na base de como
o Senhor considera aquele irmão. "Senhor, Tu vês que ele é amável e Tu o
amas. Ama-o, agora, por meio da minha pessoa!" Esta lei da vida cristã se
manifesta na realidade — em caráter moral absolutamente genuíno. Há hipocrisia
e representação demais na vida dos crentes. Nada destrói mais a eficiência do
testemunho cristão do que fingir-se algo que não corresponde à realidade,
porque o homem da rua sempre acaba penetrando a máscara e descobrindo o que
realmente somos. Sim, o fingimento cede lugar à realidade uma vez que
confiantemente dependemos da lei da vida.
O quarto passo: "Andai no Espírito"
"Porquanto, o que fora
impossível à lei, no que estava enferma pela carne, isso fez Deus enviando o
seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado; e,
com efeito, condenou Deus, na carne, o pecado. A fim de que o preceito da lei
se cumprisse em nós que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito"
(Rm 8.3,4).
Quem lê com atenção estes
dois versículos percebe que aqui há dois assuntos: em primeiro lugar, o que o
Senhor Jesus fez por nós e, em segundo lugar, o que o Espírito Santo
fará em nós. A "carne" é "enferma", portanto, os
preceitos da lei não podem ser cumpridos em nós "segundo a carne".
(Lembremo-nos de que queremos tratar aqui da questão de agradar a Deus, e não
da questão da salvação). Ora, por causa da nossa incapacidade, Deus deu dois
passos. Em primeiro lugar, interveio para tratar do âmago do nosso problema,
enviando o Seu Filho, na carne, que morreu pelo pecado e, ao fazê-lo,
"condenou, na carne, o pecado". Isto quer dizer que, como nosso Representante,
levou à morte tudo quanto em nós existe que pertencia à velha criação, quer lhe
chamemos "o nosso velho homem", "a carne", ou o
"Eu" carnal. Deus desferiu assim um golpe bem na raiz do nosso
problema, removendo deste modo a razão
de ser, fundamental, da nossa
fraqueza. Este foi o primeiro passo.
Contudo, "o preceito da
lei" ainda estava para ser cumprido "em nós". Como podia isto
ser feito? Tornou-se necessária a nova provisão de Deus: a do Espírito Santo
que veio habitar em nós. Ele é enviado para cuidar do aspecto interior deste
assunto, e Ele realiza esta obra em nós na medida em que "andamos no
Espírito".
O que significa andar no
Espírito? Significa duas coisas. Primeiramente, não é um trabalho, é um andar.
Graças a Deus, o esforço, opressivo e infrutífero, que eu fazia quando
procurava "na carne" agradar a Deus, dá lugar à dependência bendita
da Sua "eficácia, que opera eficientemente em mim" (Cl 1.29). É por
esta razão que Paulo contrasta as "obras" da carne com o
"fruto" do Espírito (Gl 5.19,22).
Em segundo lugar, "andar
no Espírito" implica sujeição a Ele. Andar segundo a carne significa que
me submeto aos ditames da carne, e os versículos seguintes, Rm 8.5-8, mostram
para onde essa atitude me conduz. Só me levará a conflitos com Deus. Andar no
Espírito é estar sujeito ao Espírito; quem anda nEle de modo nenhum pode agir
de maneira independente dEle. Eu devo estar sujeito ao Espírito Santo. As
iniciativas da minha vida devem ficar com Ele. Somente na medida em que me
submeto a Ele para Lhe obedecer é que verei em plena operação "a lei do
Espírito da vida", bem como o cumprimento do "preceito da lei"
(tudo o que procuro fazer para agradar a Deus) - já não por mim, mas em
mim. "Todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, são filhos de
Deus" (Rm 8.14).
Todos estamos familiarizados
com as palavras da bênção apostólica em II Co 13.13: "A graça do Senhor
Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos
vós". O amor de Deus é a fonte de toda a bênção espiritual; a graça do
Senhor Jesus transmitiu a nós as riquezas espirituais; e o Espírito Santo
produz a comunhão que desfrutamos das bênçãos. O amor é algo escondido no
coração de Deus; a graça é este amor expressado e colocado ao nosso dispor pelo
Filho; a comunhão é a obra do Espírito em nos comunicar esta graça. O que o Pai
projetou para nós, o Filho cumpriu e realizou em nosso favor, e agora o
Espírito o comunica e transmite a nós. Portanto, quando descobrimos algo novo
que o Senhor Jesus alcançou para nós na Sua Cruz, devemos tomar atitude firme
de sujeição e obediência ao Espírito Santo, e assim estará aberto o caminho
pelo qual Ele possa
concretizar isto em nossa experiência, transmitindo-o a nós. É este o Seu
ministério, é com este propósito que veio — para fazer com que tudo quanto é
nosso em Cristo venha a ser uma realidade em nossa vida.
Na China já aprendemos que,
quando levamos uma alma a Cristo, devemos fazer um trabalho muito completo,
porque não há certeza de quando ela voltará a receber auxílio de outro
cristão. Sempre procuramos deixar bem claro na mente de um novo crente que,
quando pediu ao Senhor o perdão dos seus pecados e que entrasse na sua vida, o
seu coração tornou-se a residência de uma Pessoa viva. O Espírito Santo de Deus
está agora dentro dele, para lhe abrir as Escrituras, a fim de que possa chegar
a ver Cristo nelas, para dirigir a sua oração, governar a sua vida, e reproduzir nele o caráter do seu Senhor.
Muitos de nós sabemos que
Cristo é a nossa vida. Cremos que o Espírito de Deus reside em nós, mas este
fato tem pequeno efeito no nosso comportamento. A questão é: conhecemo-Lo como
uma Pessoa viva, e conhecemo-Lo como Senhor da nossa vida, que nos orienta diariamente?
11
Um
corpo em Cristo
Antes de passarmos ao nosso
último assunto principal, resumiremos o que já foi dito. Procuramos explicar de
maneira clara e simples algumas experiências pelas quais os cristãos
habitualmente passam. Mesmo assim, cada cristão faz muitas descobertas
enquanto anda com o Senhor, e devemos evitar cuidadosamente a tentação de
simplificar demais a obra de Deus em nós, porque isto pode nos levar a sérios
embaraços.
Há filhos de Deus que crêem
que toda a nossa salvação, inclusive a questão de se levar uma vida santa, depende
de apreciarmos devidamente o valor do precioso Sangue. Ressaltam, com razão, a
importância de se acertar contas com Deus imediatamente, no que se refere a
pecados específicos conhecidos, e a contínua eficácia do Sangue em lavar os
pecados cometidos, mas consideram que o Sangue opera tudo. Crêem numa santidade
que realmente apenas significa a separação do homem do seu passado; crêem que,
pela purificação do que têm feito até então, por meio do Sangue derramado, Deus
separa um homem do mundo para ser Seu, e isso é santidade; e param aqui. Deste
modo, ficam aquém das exigências básicas de Deus, e, assim, aquém da plena
provisão que Ele nos oferece. Penso que já percebemos claramente a insuficiência
deste conceito.
Há, então, os que vão mais
longe e percebem que Deus os inclui na morte do Seu Filho na Cruz, a fim de
libertá-los do pecado e da Lei, liquidando o assunto do velho homem. Estes são
os que realmente exercem fé no Senhor, porque se gloriam em Cristo Jesus e
cessam de confiar na carne, Fp. 3.3. E, a partir daqui, muitos foram ainda mais
longe, reconhecendo que a consagração significa entregar-se incondicionalmente
nas Suas mãos, seguindo-O. Todos estes passos são iniciais e, partindo deles,
já tocamos em outras fases de experiência que Deus nos oferece e que muitos já
conhecem. É sempre essencial que nos recordemos que, embora cada uma delas
seja um precioso fragmento da verdade, nenhuma é, por si só, a verdade total.
Todas estas experiências nos sobrevêm como fruto da obra de Cristo na Cruz, e
não podemos permitir que descuidemos de qualquer delas.
Uma porta e um caminho
Reconhecendo que há várias
fases deste tipo na vida e experiências do crente, devemos notar agora que
embora tais fases nem sempre ocorram em ordem precisa e fixa, parecem ser
assinaladas por certos passos ou características que se repetem. Quais são
estes passos? Primeiro, temos a revelação. Como já vimos, esta sempre precede
a fé e a experiência. Por meio da Sua Palavra, Deus nos abre os olhos para a
veracidade de algum fato relacionado com Seu Filho e somente depois, na medida
em que aceitamos esse fato para nós próprios, é que se toma uma experiência
real em nossas vidas. Assim, temos:
1. Revelação (Objetiva).
2. Experiência (Subjetiva)
Além disso, notamos que tal
experiência tem, habitualmente, a forma dupla de uma crise que conduz a um
progresso contínuo. É de grande auxílio pensar neste assunto em termos das
expressões de João Bunyan: "Entrada pequena e estreita para onde os
cristãos entram num caminho estreito". O nosso Senhor Jesus falou de uma
porta e de um caminho assim que levam à vida (Mt 7.14), e a experiência
concorda com isto. De modo que temos:
1. Revelação
2. Experiência:
a) Uma porta estreita (Crise)
b) Um caminho estreito
(Processo)
Voltemos agora a alguns dos
assuntos já considerados, e vejamos como esta demonstração nos ajuda a compreendê-los.
Tomemos, em primeiro lugar, a nossa justificação e o novo nascimento.
Primeiro, há uma revelação da obra de Jesus Cristo, a expiação feita na
Cruz pelos nossos pecados; seguem-se, depois, a crise do arrependimento e a fé
(a porta estreita), por meio dos quais inicialmente "chegamos perto"
de Deus (Ef 2.13); e isto nos leva a andar em comunhão contínua com Ele (o
caminho estreito), que depende do nosso acesso diário a Deus, baseado ainda no
Sangue precioso (Hb 10.19-22).
Quando chegamos ao assunto da
libertação do pecado, temos de novo três passos: a obra de revelação do
Espírito Santo, ou "sabendo" (Rm 6.6); a crise de fé, ou
"considerando-se" (Rm 6.11); e o processo contínuo de consagração, ou
"oferecendo-nos" a Deus (Rm 6.13), na base de andarmos em novidade de
vida. Consideremos a seguir o dom do Espírito Santo. Este principia,
também, com uma nova "visão" do Senhor Jesus glorificado no trono,
que resulta na experiência dupla do Espírito derramado e da habitação interior
do Espírito Santo. Avançando para a questão de agradar a Deus, achamos
de novo a necessidade de iluminação espiritual, para podermos ver os valores
da Cruz em relação à "carne" — a totalidade da vida própria do
homem. A nossa aceitação da mesma, pela fé, nos leva imediatamente à
experiência da "porta estreita" (Rm 7.25) em que inicialmente cessamos
de "fazer" e aceitamos pela fé a operação poderosa da vida de Cristo
para satisfazer as exigências práticas de Deus sobre nós. Isto, por sua vez,
nos leva ao "caminho estreito" de um andar em obediência ao Espírito
(Rm 8.4).
O quadro não é idêntico em
cada caso, e devemos, precaver-nos de forçar qualquer padrão rígido do
trabalho do Espírito Santo; é provável, no entanto, que qualquer nova
experiência nos sobrevenha mais ou menos segundo estas linhas. Certamente
haverá sempre, em primeiro lugar, um abrir dos nossos olhos para algum novo
aspecto de Cristo e da Sua obra consumada, e depois, a fé abrirá uma porta para
um caminho. Lembremo-nos, também de que, ao dividir a experiência cristã em
vários assuntos, tais como a justificação, o novo nascimento, o dom do
Espírito, a libertação, a santificação, etc, estamos apenas procurando
classificar e simplificar, e não quer dizer que estas fases devem seguir-se
sempre uma às outras por certa ordem prescrita. Pelo contrário, se nos for
feita, logo de início, uma apresentação plena de Cristo e da Sua Cruz, bem
poderemos., desde o primeiro dia da nossa vida cristã, percorrer uma grande
extensão de experiências, embora possa seguir-se só mais tarde uma explicação
completa de grande parte dela. Quem dera que toda a pregação do Evangelho
fosse de tal natureza!
Uma coisa é certa: a
revelação precederá sempre a fé. Quando percebemos algo que Deus fez em Cristo,
a nossa resposta é: "Obrigado, Senhor", e a fé segue espontaneamente.
A revelação é sempre a obra do Espírito Santo, que é dado para acompanhar-nos
e guiar-nos em toda a verdade (João 16.13), abrindo-nos as Escrituras. Contemos
com Ele, porque Ele está presente para realizar justamente aquilo e, quando
formos confrontados por dificuldades como falta de entendimento ou falta de
fé, enderecemos estas dificuldades diretamente ao Senhor: "Senhor, abre
os meus olhos. Senhor, esclarece-me esta coisa nova. Senhor, ajuda Tu a minha
incredulidade". Ele não deixará de atender a nossa petição.
A quádrupla
obra de Cristo na Cruz
Agora estamos prontos para
avançar mais um passo e considerar quão grande é a diversidade de aspectos
abrangidos pela Cruz do Senhor Jesus Cristo. À luz da experiência cristã, e
com fins analíticos em vista, poderá nos servir de auxílio reconhecer quatro
aspectos da obra redentora de Deus. Porém, ao fazê-lo, é essencial ter em
mente que a Cruz de Cristo é uma só obra divina, e não muitas. Uma vez, na
Judéia, há dois mil anos, o Senhor Jesus morreu e ressuscitou e está agora
"exaltado à destra de Deus" (At 2.33). A obra está consumada e
jamais precisará de repetição ou acréscimo.
Dos quatro aspectos da Cruz
que passaremos a citar agora, já consideramos três da maneira pormenorizada, e
o último será considerado nos dois capítulos seguintes do nosso estudo. Podem
ser resumidos como segue:
1. O sangue de Cristo, para
tratar dos pecados e da culpa.
2. A Cruz de Cristo, para tratar do pecado, da carne e do homem natural.
3. A Vida de Cristo, colocada
à disposição do homem, para residir nele, criá-lo de novo e dar-lhe poder.
4. A Operação da Morte no
homem natural, a fim de que aquela Vida interior possa ser progressivamente
manifesta.
Os dois primeiros aspectos
têm efeito remediador, e visam desfazer a obra do Diabo e o pecado do homem. Os
dois últimos são mais positivos: relacionam-se mais diretamente à realização
do propósito de Deus. Os dois primeiros têm em vista a recuperação do que Adão
perdeu na Queda; os dois últimos visam levar-nos para dentro de, e colocar
para dentro de nós, algo que Adão nunca teve. Percebemos assim, que o que o
Senhor Jesus realizou na Sua morte e ressurreição compreende uma obra que não
só proveu a redenção do homem, como também possibilitou o cumprimento do
propósito de Deus.
Em capítulos anteriores,
consideramos pormenorizadamente os dois aspectos da Sua morte, representados
pelo Sangue para os nossos pecados e a nossa culpa, e pela Cruz para o pecado
e a carne. Ao considerar o propósito eterno, mencionamos de relance o terceiro
aspecto — o que é representado por Cristo como o grão de trigo -e, no nosso
último capítulo, considerando Cristo como nossa vida, falamos algo acerca do
seu desenvolvimento prático. Antes, porém, de passarmos para o quarto ponto, a
que chamarei "carregar a Cruz", devemos dizer mais alguma coisa sobre
este terceiro aspecto, a libertação da vida de Cristo, pela ressurreição, para
residir no homem e dar-lhe poder para o serviço.
Falando do propósito de Deus
na criação, já dissemos que este abrangia muito mais do que aquilo que Adão
chegou a usufruir. Que propósito foi esse? Deus desejou ter uma raça de homens,
cujos membros fossem dotados de um espírito, por meio do qual seria possível a
comunhão com Ele mesmo, que é Espírito. Aquela raça, possuindo a própria vida
de Deus, deveria cooperar no cumprimento do Seu objetivo proposto,derrotando o
inimigo em cada levante que ele fizer, e desfazendo as suas obras más. Foi
este o grande plano. Como será cumprido agora? Mais uma vez, a resposta se acha
na morte de Cristo Jesus. É uma morte potente. É algo positivo, revestido de
propósito, indo muito além da recuperação de uma posição perdida: porque, por
ela, não somente se trata do pecado e do velho homem, como também se introduz
algo infinitamente maior.
O amor
de Cristo
Devemos ter agora diante de
nós dois trechos da Palavra, um de Gênesis 2, e outro de Efésios 5, que são de
grande importância neste aspecto.
"Então o SENHOR Deus fez
cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu: tomou uma das suas costelas,
e fechou o lugar com carne. E a costela que o SENHOR Deus tomara ao homem,
transformou-a numa mulher, e lha trouxe. E disse o homem: Esta, afinal, é osso
dos meus ossos e carne da minha carne; chamar-se-á varoa (Hebraico ishshah),
porque do varão (Hebraico ish) foi tomada" (Gn 2.21-23).
"Maridos, amai vossas
mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela,
para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela
palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga,
nem cousa semelhante, porém santa e sem defeito" (Ef 5.25-27).
Efésios 5 é o único capítulo
na Bíblia que explica a passagem em Gênesis 2. O que se nos apresenta em Efésios
é realmente notável, se refletirmos nisso. Refiro-me à expressão: "Cristo
amou a igreja", verdade sumamente preciosa.
Temos sido ensinados a pensar
de nós mesmos como pecadores que precisamos de redenção, verdade que tem sido
inculcada durante gerações, e damos graças a Deus por este ponto de partida, mas
não é isso que Deus tem em vista como o Seu objetivo final. Deus fala
aqui, antes, de uma "igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa
semelhante, porém santa e sem defeito". Temos pensado demasiadamente na
igreja como sendo meramente constituída por muitos "pecadores
salvos", que de fato é, como se a Igreja fosse somente isso, o que não é o
caso. A expressão "pecadores salvos" se relaciona com a história do
pecado e da Queda; aos olhos de Deus, porém, a Igreja é uma criação divina
no Seu Filho. O primeiro conceito é principalmente individual, o outro,
coletivo. A perspectiva do primeiro é negativa, e pertence ao passado; a do
outro é positiva, visando o futuro. O "propósito eterno" é algo que
está na mente de Deus, desde a eternidade, relativamente ao Seu Filho, e tem
como objetivo que o Filho tenha um Corpo para expressar a Sua vida. Encarada
deste ponto de vista — o ponto de vista do coração de Deus — a Igreja está para
além do pecado e jamais foi tocada pelo pecado.
Em Efésios temos, portanto,
um aspecto da morte de Cristo que não aparece tão claramente em outros trechos.
Em Romanos, as coisas são encaradas do ponto de vista do homem caído e,
principiando com o fato de que Cristo morreu pelos pecadores e inimigos, os
ímpios (Rm 5), somos levados progressivamente ao "amor de Cristo" (Rm
8.35). Em Efésios, por outro lado, o ponto de vista é de Deus, "antes da
fundação do mundo" (Ef 1.4), e o coração do Evangelho é: "Cristo amou
a igreja e a si mesmo se entregou por ela" (Ef 5.25). Assim, em Romanos,
a tecla é: "nós pecamos", e a mensagem é a do amor de Deus pelos
pecadores (Rm 5.8), enquanto em Efésios a nota é: "Cristo amou", e o
amor aqui é o do marido pela esposa. Este tipo de amor, fundamentalmente, nada
tem a ver com o pecado, como tal. O que está em vista, nesta passagem, não é a
expiação pelo pecado, mas a criação da Igreja, propósito com que, segundo aqui
se afirma, Ele "a si mesmo se entregou por ela".
Há, portanto, um aspecto da
morte do Senhor Jesus que é inteiramente positivo e, sobretudo, uma questão de
amor pela Sua Igreja, em que não figura diretamente o assunto do pecado e dos
pecadores. Para nos familiarizar com isso, Paulo toma como ilustração o
incidente em Gênesis 2. Esta é uma das coisas maravilhosas da Palavra, e, se os
nossos olhos tiverem sido abertos para vê-la, certamente adoraremos a Deus.
De Gênesis 3 em diante, desde
as "túnicas de peles" ao sacrifício de Abel, e daí em diante, por
todo o Antigo Testamento, há numerosos tipos que prenunciam a morte do Senhor
Jesus como expiação pelo pecado. Todavia, o apóstolo não se refere aqui a
qualquer deles, senão este em Gênesis 2. Notemos que foi só no capítulo 3 que o
pecado entrou. Há um tipo da morte de Cristo no Antigo Testamento que nada tem
a ver com o pecado, porque não é subseqüente à Queda, mas anterior a ela. É
este o tipo que encontramos em Gênesis 2, e que vamos considerar.
Pode-se dizer que Adão foi
adormecido porque Eva cometera um pecado sério? É isso que encontramos aqui?
Certamente que não, porque Eva nem mesmo fora criada. Ainda não havia tais
questões e problemas de ordem moral. Não, Adão foi adormecido com o expresso
propósito de se tirar dele algo que seria transformado em um novo ser. Não foi
o pecado dela, e sim, a sua existência que estava em jogo neste sono. É isto
que estes versículos ensinam. Esta experiência de Adão teve como propósito a
criação de Eva conforme o que fora determinado no Conselho Divino. Deus, para
produzir uma ishshah, fez cair um sono sobre o homem (ish), tomou
uma das suas costelas e transformou-a em ISHSHAH (mulher), e trouxe-a
ao homem. É este o quadro que Deus nos oferece. Prefigura um aspecto da morte
do Senhor Jesus que, primariamente, não é para expiação, mas que corresponde
ao sono de Adão neste capítulo.
Deus me livre de sugerir que
o Senhor Jesus não morreu com o propósito de fazer expiação pelos pecados; dou
graças a Deus porque Ele a fez. Devemos nos lembrar, porém, de que agora
estamos em Efésios 5, e não em Gênesis 2. Efésios foi escrito depois da
Queda, a homens que tinham sofrido os seus efeitos, e temos aqui não só os
propósitos de Deus na Criação, mas também as cicatrizes da Queda — ou, do
contrário, não seria necessário mencionar "sem mácula, nem ruga".
Porque ainda estamos na terra e a Queda é uma realidade histórica, sendo, portanto,
necessária a nossa "purificação".
Mesmo assim, devemos sempre
considerar a redenção como uma interrupção, uma medida de
"emergência" que se tornou necessária pelo rompimento catastrófico da
linha reta do propósito de Deus. A redenção é algo tão grandioso e maravilhoso
para ocupar grande parte do nosso horizonte, mas Deus pós mostra que não devemos considerar a redenção como sendo
tudo, como se o homem tivesse sido criado para ser redimido. A Queda, na
realidade, é um trágico desvio, para baixo, daquela linha reta do propósito
divino, e a expiação é a recuperação abençoada por meio da qual os nossos
pecados são apagados e nós somos restaurados. Uma vez consumada, porém, ainda
resta uma obra a ser feita, a fim de que nós recebamos aquilo que Adão nunca
possuiu, e que Deus receba o que o Seu coração deseja, porque Deus nunca abandonou
o propósito representado por aquela linha reta. Adão nunca entrou na posse
daquela plenitude da vida de Deus que a árvore da vida representava. Mas, pela
obra de Jesus Cristo na Sua morte e ressurreição (e devemos sublinhar que a
obra é uma só), a Sua vida se tornou disponível a nós, e assim, pela fé,
recebemos mais do que Adão já possuiu. Quando recebemos Cristo como a nossa
vida, o propósito de Deus já vai se cumprindo.
Adão foi adormecido, e diz-se
a respeito dos crentes, que adormecem, e não que morrem. Por que? Porque quando
se menciona a morte, pensa-se no pecado como seu pano de fundo. Segundo Gênesis
3, o pecado entrou no mundo e a morte pelo pecado, mas o sono de Adão precedeu
este fato. Por isso, o Senhor Jesus aqui é tipificado de maneira diferente do
que em qualquer outro tipo no Antigo Testamento. Em relação ao pecado e à
expiação, há um cordeiro ou um bezerro morto. Aqui, porém, Adão não foi morto,
e sim, meramente adormecido para então despertar novamente. Prefigura assim
uma morte que não é por causa do pecado, mas que tem em vista a reprodução pela
ressurreição. Devemos também notar que Eva não foi criada como uma entidade separada,
por uma criação separada, paralela à de Adão. Adão adormeceu e Eva foi criada
de Adão. É este o método de Deus em relação à Igreja. O "segundo
Homem" de Deus foi despertado do Seu "sono" e a Sua Igreja é
criada nEle e dEle, para derivar a sua vida dEle e manifestar essa vida
ressurreta.
Deus tem um Filho Unigênito e
quer que Ele tenha irmãos, passando então a ser o Primogênito entre muitos
filhos de Deus. Um grão de trigo morreu, e, em seu lugar, surgiram muitos
grãos. O primeiro grão era o único, mas agora é o primeiro entre muitos. O
Senhor Jesus deu a Sua vida, e essa vida se manifestou em muitas vidas. São
estas as figuras bíblicas que empregamos até aqui no nosso estudo, para
expressar esta verdade. Agora, na figura que acabamos de considerar, o singular
toma o lugar do plural. O resultado, fruto e expressão da Cruz é uma única
pessoa: uma Noiva para o Filho. Cristo amou a igreja e a Si mesmo Se deu por
ela.
Um sacrifício
vivo
Já dissemos que há em Efésios
5 um aspecto da morte de Cristo que, até certo ponto, é diferente daquele que
já estudamos em Romanos. Contudo, este aspecto é realmente o que visa nosso
estudo de Romanos, e veremos que é nesta direção que Romanos nos leva, já que a
redenção nos leva de volta ao propósito original de Deus.
No capítulo 8, Paulo diz que
Cristo é Filho primogênito entre muitos "filhos de Deus" (Rm 8.14),
guiados pelo Espírito."Porquanto aos que de antemão conheceu, também os
predestinou para serem conformes à imagem de Seu Filho, a fim de que ele seja o
primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou;
e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses
também glorificou" (Rm 8.29, 30). Aqui vemos que a justificação leva à
glória, glória que se expressa, não em um ou mais indivíduos, mas numa
pluralidade: em muitos que manifestam a imagem de Um. Este alvo da nossa
redenção é, além disso, expresso no "amor de Cristo" pelos que são
Seus, descrito nos últimos versículos do capítulo (8.35-39). O que está
implícito aqui se torna explícito quando passamos ao capítulo 12, que trata do
Corpo de Cristo.
Depois dos oito capítulos
iniciais de Romanos já estudados aqui, segue-se um parêntese em que se
consideram as relações soberanas de Deus com Israel, antes de se voltar ao
tema dos capítulos originais. Assim, para o nosso propósito atual, o argumento
do capítulo 12 segue o do capítulo 8 e não o do capítulo 11. Poderíamos fazer
um resumo em conjunto destes capítulos, de maneira muito simples: Os nossos
pecados são perdoados (cap. 5), estamos mortos com Cristo (cap. 6), por
natureza estamos totalmente incapacitados (cap. 7), portanto, dependemos do
Espírito Santo que em nós reside (cap. 8), em conseqüência do que "somos
um corpo em Cristo" (cap. 12). E como se isto fosse o resultado e a
expressão de tudo o que precedeu, e o alvo visado desde o princípio.
Romanos 12 e os capítulos
seguintes contêm algumas ilustrações muito práticas para a nossa vida e o nosso
andar. Estas são introduzidas com uma ênfase repetida que se dá à consagração.
Em 6.13, Paulo diz: "Oferecei-vos a Deus, como ressurretos dentre os
mortos, e os vossos membros a Deus como instrumentos de justiça". Mas
agora, no capítulo 12.1, a ênfase é um pouco diferente: "Rogo-vos, pois,
irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis os vossos corpos a Deus
por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto
racional". Neste novo apelo à consagração, somos chamados
"irmãos", ou seja, há um relacionamento mental com os "muitos irmãos"
de 8.29. O apelo visa que façamos, num passo unido de fé, a apresentação dos
nossos corpos como "sacrifício vivo" a Deus.
Isto vai além do meramente
individual, porque implica a contribuição a um todo. O
"oferecimento" é individual e pessoal, mas o "sacrifício"
é coletivo; é um só sacrifício. Nunca devemos sentir que a nossa contribuição
é desnecessária, porque se contribui para o serviço a Deus, Ele fica
satisfeito. É no culto e no servir que experimentamos "qual seja a boa,
agradável e perfeita vontade de Deus" (12.2), ou, noutras palavras,
compreendemos o propósito eterno de Deus em Cristo Jesus. Assim, o apelo de
Paulo a "cada um dentre vós" (12.3) está à luz deste fato divino,
que "nós, conquanto muitos, somos um só corpo em Cristo, e membros uns dos
outros" (12.5) e é nesta base que se seguem as instruções práticas.
O vaso através de que o
Senhor Jesus pode revelar-Se a esta geração não é indivíduo, e, sim, o Corpo.
Deus repartiu a cada um segundo a medida da fé (Rm 12.3) mas, só e isolado, o
homem nunca pode cumprir o propósito de Deus. E necessário um Corpo completo
para atingir a estatura de Cristo e manifestar a Sua glória. Oxalá pudéssemos
verdadeiramente sentir isto!
Assim sendo, Romanos 12.3-6
tira da ilustração do corpo humano a lição da nossa interdependência. Os cristãos
individuais não são o Corpo; são membros do Corpo, e, num corpo humano, os
membros não têm todos a mesma função. O ouvido não deve imaginar-se olho.
Nenhuma oração pode fazer com que o ouvido veja, mas, através do olho, o
corpo inteiro poderá ver. Assim, figurativamente falando, talvez tenha apenas o
dom de ouvir, mas posso ver através de outros que têm o dom da vista; ou,
talvez posso andar, mas não possa trabalhar, de modo que recebo ajuda das mãos.
Este não é apenas um
pensamento consolador: é um fator vital na vida do povo de Deus. Não podemos
prosseguir uns sem os outros. É por esta razão que a comunhão pela oração é
tão importante. A oração em conjunto nos oferece o auxílio do Corpo inteiro,
como se vê em Mt 18.19,20. Confiar no Senhor, por si só, talvez não seja
suficiente: devo reunir minha confiança à de outros irmãos. Devo aprender a
orar o "Pai nosso..." na base da unidade do Corpo, porque sem
o auxílio do Corpo não posso prevalecer e triunfar. Isto se torna ainda mais
evidente na esfera do serviço. Sozinho não posso servir eficientemente ao
Senhor, e Ele tudo fará para me ensinar esta verdade. Ele porá termo a certas
coisas, permitindo que se fechem portas e deixando-me redobrar em vão os meus
esforços, até que eu compreenda que necessito do auxílio do Corpo, assim como
preciso do Senhor. A vida de Cristo é a vida do Corpo, e os Seus dons nos são
concedidos para que contribuamos à edificação do Corpo.
O Corpo não é uma ilustração
e, sim, uma realidade. A Bíblia não diz apenas que a Igreja é como um corpo; diz
que é o Corpo de Cristo. "Nós, conquanto muitos, somos um só corpo
em Cristo e membros uns dos outros". Todos os membros juntos formam o
Corpo, porque todos participam da vida dEle — como se Ele mesmo fosse distribuído
entre os Seus membros. Encontrava-me certa vez com um grupo de crentes
chineses que achavam muito difícil compreender como o Corpo pode ser um quando
os membros são homens e mulheres individuais e separados. Certo domingo,
estava para partir o pão à Mesa do Senhor, e pedi-lhes que olhassem muito bem o
pão antes de este ser partido. Então, depois de o pão ter sido distribuído e
comido, fiz notar que, embora ele estivesse dentro de cada um deles, ainda era
um só pão, e não muitos. O pão estava dividido, mas Cristo não está dividido,
nem sequer no sentido em que foi partido o pão. Ele continua sendo Espírito em
nós, e nós todos somos um nEle.
Esta condição é a oposta do
homem natural. Em Adão, eu tenho a vida de Adão, mas esta vida é essencialmente
individual. No pecado, não existe união, nem comunhão: Há apenas o interesse
próprio, e a desconfiança dos outros. Na medida em que prossigo com o Senhor,
passo a ver que não somente deve ser considerado e resolvido o problema do meu
pecado e da minha força natural, como também o problema criado pela minha vida
"individual", a vida que é suficiente em si mesma e que não reconhece
precisar do Corpo e de ser unida a Ele. Talvez tenha solucionado os problemas
do pecado e da carne sem, contudo, deixar de ser um individualista convicto.
Desejo para mim mesmo, pessoal e individualmente, a vitória e a vida
frutífera, sem dúvida pelos mais puros motivos; tal atitude, porém, não leva
em conta o Corpo, não podendo, portanto, dar satisfação a Deus. Nesta questão
também, é mister que Ele faça com que eu sinta a Sua vontade, senão,
permanecerei em conflito com os Seus objetivos. Deus não me censura por ser um
indivíduo, e, sim, pelo meu individualismo. O Seu maior problema não são as
divisões exteriores e as denominações que dividem a Sua Igreja, e, sim, os
nossos próprios corações individualistas.
Sim, quanto a esta questão, a
Cruz tem que fazer a sua obra, fazendo-me lembrar que, em Cristo, eu morri paia
aquela antiga vida de independência que herdei de Adão, e que, pela
ressurreição, não me tornei apenas um crente individual em Cristo, mas também
um membro do Seu Corpo. Há uma vasta diferença entre as duas posições. Quando
percebo isto, imediatamente deixo de lado esta vida de independência, e
procuro a comunhão. A vida de Cristo em mim gravitará para a vida de Cristo nos
outros. Já não possuo ponto de vista individualista. Os ciúmes se desvanecem. A
competição cessa. Acaba-se a obra particular Já não importam os meus
interesses, as minhas ambições, as minhas preferências. Já não importa qual de
nós realiza a obra. O que interessa é que o Corpo cresça.
Eu disse: "Quando percebo
isto..." É esta a grande necessidade: perceber o Corpo de Cristo como
outro grande fato divino; ter profundamente gravado em nosso espírito, por
revelação celestial, que "nós, conquanto muitos, somos um só Corpo em
Cristo". Somente o Espírito pode nos revelar isto, intimamente, em todo o
seu significado e, quando o fizer, isso revolucionará a nossa vida e a nossa
obra.
Mais de que vencedores por meio dEle.
Nós só vemos a história a
partir da Queda. Deus a vê desde o princípio. Havia na mente de Deus um plano antes
da Queda, e nos tempos vindouros isso será plenamente compreendido. Deus
conhecia tudo a respeito do pecado e da redenção. Todavia, no Seu grande
propósito para a Igreja, expresso em Gênesis 2, não há perspectiva do pecado. É
como se (para falar em termos finitos) Ele saltasse em pensamento por cima de
toda a história da redenção e visse a Igreja na eternidade futura, tendo um ministério
e uma história (futura) que está inteiramente separada do pecado e é totalmente
de Deus. É o Corpo de Cristo na glória, não expressando qualquer coisa do homem
caído mas somente o que é a imagem do glorificado Filho do homem. Esta é a
Igreja que satisfez o coração de Deus e que alcançou domínio.
Em Efésios 5, encontramo-nos
dentro da história da redenção e, contudo, pela graça, ainda temos em vista
este propósito eterno de Deus de apresentar a Si mesmo, Igreja gloriosa.
Notemos, porém, que a Igreja, agora corrompida pela Queda, precisa da água da
vida e da Palavra purificadora para a sua apresentação a Cristo, em glória,
porque agora há defeitos para remediar e feridas para curar. Mesmo assim, quão
preciosa é a promessa e quão graciosas as palavras usadas a respeito dela:
"Sem mácula" — as cicatrizes do pecado, cuja história está agora
esquecida; "nem ruga" — as marcas da idade e do tempo perdido, porque
agora tudo é refeito e tudo é novo; "sem defeito" — de modo que nem
Satanás, nem os demônios, nem os homens podem descobrir qualquer razão ou
motivo para censurá-la.
É aqui que nos encontramos
agora. A era está chegando ao fim, e o poder de Satanás é maior do que nunca.
A nossa luta é contra anjos, principados e potestades (Rm 8.38; Ef 6.12) que
estão resolutos na sua oposição à obra de Deus em nós, e que querem destruí-la,
lançando muitas acusações contra os eleitos de Deus. Sozinhos, nunca
poderíamos vencê-los, mas o que não podemos fazer sozinhos, pode a Igreja
fazê-lo. O pecado, a dependência própria e o individualismo foram os golpes de
mestre que Satanás desferiu no coração dos propósitos de Deus para o homem, e,
na Cruz, Deus neutralizou-os. Na medida em que pomos a nossa fé no que Ele fez
-em "Deus, que justifica" e em "Cristo Jesus que morreu' (Rm
8.33,34) — apresentamos uma frente contra a qual as próprias portas do Inferno
não prevalecerão. Nós, a Sua Igreja, somos "mais que vencedores por Aquele
que nos amou" (Rm 8. 37).
12
A
cruz e a vida da alma
Deus, por meio da Cruz de
Cristo, fez plena provisão para a nossa redenção, mas não Se deteve aí. Nessa
Cruz, Ele também assegurou, além de toda a possibilidade de fracasso, aquele
plano eterno de que Paulo fala como sendo, desde todos os tempos, "oculto
em Deus, que criou todas as coisas". Proclamou esse plano "para que,
pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus se torne conhecida agora dos
principados e potestades nos lugares celestiais, segundo o eterno propósito
que estabeleceu em Cristo Jesus nosso Senhor" (Ef 3.9-11).
Já dissemos que a obra da
Cruz tem duas conseqüências que dizem respeito diretamente à realização
daquele propósito em nós. Por um lado, resultou na Sua vida ser liberada a fim
de ser concedida a nós, para que possa manifestar-se e expressar-se em nós por
meio do Espírito Santo, que em nós habita. Por outro lado, possibilitou aquilo
que chamamos "tomar a Cruz", isto é, a nossa cooperação na operação
interior e diária da Sua morte, por meio da qual se cria em nós a possibilidade
daquela nova vida se manifestar, fazendo com que o "homem natural"
volte progressivamente ao seu devido lugar de sujeição ao Espírito Santo.
Evidentemente, estes são os aspectos positivo e negativo da mesma coisa.
De modo igualmente claro,
estamos tocando no âmago do assunto de se progredir na vida vivida para Deus.
Nas nossas considerações feitas até aqui, no tocante à vida cristã,
ressaltamos principalmente a crise de acesso a ela. Agora a nossa atenção se
dedica mais definitivamente ao andar do discípulo, tendo especialmente em vista
a sua preparação como servo de Deus. Foi a respeito dele que o Senhor Jesus
Cristo disse: "Qualquer que não tomar a sua cruz e vier após mim, não
pode ser meu discípulo" (Lc 14.27).
Assim, chegamos à altura de
considerar o homem natural e o significado de "tomar a Cruz". Para
compreender isto devemos voltar de novo ao Gênesis e considerar o que Deus
queria originalmente que o homem tivesse, e como o Seu propósito foi frustrado.
Com esta compreensão, teremos condições de descobrir os princípios que nos
levarão de volta à harmonia com este propósito original.
A verdadeira natureza da Queda
Por mínima que seja a luz que
possuímos sobre a natureza do plano de Deus, sempre a palavra
"homem" nos virá à mente. Diremos com o salmista: "O que é o homem,
para que Te lembres dele? " A Bíblia mostra claramente que o que Deus
deseja acima de todas as coisas é um homem — um homem que seja segundo o Seu
próprio coração.
Assim, Deus criou um homem.
Em Gênesis 2.7, lemos que Adão foi criado uma alma vivente, com um espírito
interior para comunicar-se com Deus, e com um corpo exterior para
ter contato com o mundo material. (Passagens do Novo Testamento tais como I Ts
5.23 e Hb. 4.12 confirmam este caráter tríplice do ser humano). Por meio do seu
espírito, Adão estava em contato com o mundo espiritual de Deus; por meio do
corpo, ele estava em contato com o mundo físico das coisas materiais. Reunia
em si mesmo estes dois aspectos do ato criador de Deus, tornando-se uma
personalidade, uma entidade viva no mundo, movendo-se por si mesmo e tendo
poderes de livre escolha. Visto assim, como um todo, achou-se constituído
um ser com consciência e expressão próprias, "uma alma vivente".
Já vimos que Adão foi criado
perfeito — queremos dizer com isto que não tinha imperfeições porque foi criado
por Deus — mas ainda não tinha sido aperfeiçoado. Precisava de um toque final,
porque Deus ainda não fizera tudo quanto tencionava fazer em Adão — pretendia
fazer algo mais, mas agora isto estava em suspenso. Deus estava operando, ao
criar o homem, para cumprir um propósito que ia além do próprio homem, porque
tinha em vista usufruir de todos os Seus direitos no Universo, pela
instrumentalidade do homem. Como, afinal, podia o homem ser instrumento de Deus
nesta obra? Somente por meio de uma cooperação que resulta da viva comunhão
com Deus. Deus queria ter na terra uma raça de homens que não somente
participasse de um só sangue, como também da própria vida de Deus, raça essa
que não somente derrotaria Satanás como também levaria a efeito tudo quanto
Deus propusera no Seu coração.
Além disso, vemos que Adão
foi criado com um espírito que lhe permitia ter comunhão com Deus, mas, como
homem, ainda não estava, por assim dizer, com sua orientação final; tinha
poderes de escolha e, se o desejasse, podia tomar o caminho oposto. O alvo de
Deus para o homem era a "filiação", ou, em outras palavras, a
expressão da Sua vida nos seres humanos. A Vida Divina estava representada no
jardim pela árvore da vida, que produzia fruto passível de ser recebido e
ingerido. Se Adão voluntariamente seguisse aquele caminho, escolhendo a
dependência em Deus, e comesse da árvore da vida (representando a própria vida
de Deus), receberia então aquela vida em união com Deus, que é a referida
"filiação". Mas, ao invés disso, Adão se voltasse para a árvore do
conhecimento do bem e do mal, ficaria, em resultado disso, "livre"
para se desenvolver segundo os seus próprios recursos e desejos, separadamente
de Deus. E, porque esta última escolha envolvia cumplicidade com Satanás, Adão
perderia desta forma a possibilidade de atingir o alvo que Deus lhe designara.
A questão básica: a alma humana
Ora, sabemos a direção que
Adão escolheu. Situado entre as duas árvores, submeteu-se a Satanás e tomou do
fruto da árvore do conhecimento. Isto determinou o sentido do seu
desenvolvimento. Desde então, podia comandar o conhecimento; ele
"conhecia". Mas — e é esta a lição da questão — o fruto da árvore do
conhecimento tornou o homem super-desenvolvido quanto à sua alma. A emoção
foi tocada, porque o fruto era agradável aos olhos, fazendo-o
"desejar"; a mente, com o seu poder de raciocinar foi desenvolvida,
porque ele foi "feito sábio", e a vontade foi fortalecida, de modo
que, no futuro, ele poderia sempre decidir o caminho que quisesse seguir. Todo
o fruto serviu à expansão e ao pleno desenvolvimento da alma, de modo que o
homem era não somente uma alma vivente, mas também, doravante, o homem viveria
pela alma. Não se trata meramente de o homem ter alma, senão que a alma,
daquele dia em diante, com os seus poderes independentes de livre escolha, toma
o lugar do espírito como o poder animador do homem.
Temos que distinguir entre
duas coisas, quanto a isso, porque a diferença é da maior importância. Deus não
Se opõe a termos uma alma como a que deu a Adão, pois é esta a Sua intenção; o
que Ele Se propôs a fazer foi inverter alguma coisa. Há algo errado hoje no
homem, que não é o fato de ter uma alma, e, sim, de viver pela alma. Foi esta
situação que Satanás criou pela Queda. Ardilosamente levou o homem a seguir
uma direção em que podia desenvolver a Sua alma de modo a derivar dela a sua
própria vida.
Devemos, contudo, ser
cuidadosos; o remédio não significa eliminar inteiramente a nossa alma. Não
podemos fazê-lo. Quando a Cruz opera hoje realmente em nós, não nos tornamos
inertes, insensatos, sem caráter. Não, ainda possuímos uma alma e, sempre que
recebemos alguma coisa da parte de Deus, a alma será o instrumento, a
faculdade em verdadeira sujeição a Ele, através do que a recebemos. A questão,
porém, é: mantemo-nos dentro dos limites indicados por Deus? — dentro dos limites
fixados por Ele no princípio, no Jardim — no que diz respeito à alma, ou
estamos saindo fora desses limites?
Deus agora está realizando a
obra da poda, como Viticultor. Há nas nossas almas um desenvolvimento sem
domínio e sem orientação, um crescimento inoportuno, que tem que ser verificado
e submetido a tratamento.
Deus tem que cortar isso. De
modo que há agora perante nós duas coisas, em relação às quais os nossos olhos
devem ser abertos. Por um lado, Deus quer nos levar à posição de vivermos
pela vida do Seu Filho. Por outro lado, Ele opera diretamente nos nossos
corações, para desfazer aquela outra fonte de recursos naturais que é o
resultado do fruto do conhecimento. Aprendemos cada dia estas duas lições: uma
crescente manifestação da vida dEle, e uma verificação e uma entrega à morte
daquela outra vida, a alma. Estes dois processos sempre estão em andamento,
porque Deus procura em nós a vida plenamente desenvolvida do Seu Filho, para
que Ele seja manifestado em nós, e, com este fim em vista, nos faz retroceder,
quanto à alma, ao ponto de partida de Adão. Pelo que Paulo diz: "Porque
nós, que vivemos, estamos sempre entregues à morte por causa de Jesus, para que
também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal" (2 Co 4.11).
O que significa isto?
Significa que não empreenderei nenhuma ação sem depender confiadamente de Deus.
Não encontrei suficiência em mim mesmo. Não darei qualquer passo somente porque
tenho o poder de fazê-lo. Mesmo que tenha em mim aquele poder herdado, não o
usarei; não depositarei confiança em mim mesmo. Ao tomar o fruto, Adão ficou
possuído de um poder inerente de agir, foi, porém, um poder que o colocava ao
alcance de Satanás. Perdemos aquele poder de agir quando chegamos a conhecer o
Senhor. O Senhor corta-o, e então percebemos que já não podemos agir segundo a
nossa iniciativa própria. Temos que viver pela vida de Outro; temos que derivar
tudo dEle.
Penso que todos nos
conhecemos a nós mesmos, até certo ponto, mas muitas vezes não trememos
verdadeiramente com receio de nós mesmos. Podemos dizer, como fórmula de
cortesia para com Deus: "Se o Senhor não quiser, não posso fazê-lo",
mas, na realidade, o nosso pensamento subconsciente é que, realmente, podemos
fazê-lo muito bem por nós mesmos, mesmo se Deus não nos pedir para fazê-lo nem
nos der o poder necessário para realizá-lo. Muitíssimas vezes temos sido
levados a agir, a pensar, a decidir, a ter poder, separadamente dEle. Muitos de
nós, cristãos, hoje, somos homens de alma superdesenvolvida. Ficamos
demasiadamente grandes em nós mesmos. Adquirimos "grandes almas".
Quando estamos nesta condição, a vida do Filho de Deus em nós fica restrita e
quase posta fora de ação.
A energia natural na obra de Deus
A energia da alma está
presente em todos nós. Todos os que têm sido ensinados pelo Senhor repudiam
aquele princípio como princípio de vida. Recusam viver orientados por ele; não
o deixarão reinar nem lhe permitirão tornar-se o poder impulsionador da obra de
Deus. Aqueles, porém, que não têm sido ensinados por Deus, dependem dele;
utilizam-no, consideram isto o poder.
Muitos de nós temos pensado
da seguinte maneira: eis um homem dotado de uma natureza verdadeiramente encantadora,
possuidor de um bom cérebro, esplêndidos poderes orientadores e um julgamento
sábio. Dizemos, nos nossos corações: "Se este homem fosse cristão, de que
valor seria para a Igreja! Se ele pertencesse ao Senhor, quanto representaria
para a Sua causa!"
Mas, pensemos por um momento.
De onde vem a boa natureza daquele homem? De onde provêm aqueles esplêndidos
poderes orientadores e aquele bom juízo? Não vêm de novo nascimento, porque ele
ainda não nasceu de novo. Sabemos que todos já nascemos na carne, e que necessitamos
de um novo nascimento. O Senhor Jesus disse algo a este respeito em João 3.6:
"O que é nascido da carne, é carne". Tudo o que não vem do novo
nascimento, mas do meu nascimento natural, é carne, e apenas trará glória para
o homem e não para Deus. Esta declaração não é muito agradável, mas é a
verdade.
Mencionamos o poder da alma,
a energia natural. O que é esta energia natural? É simplesmente o que eu posso
fazer, o que eu sou em mim mesmo, o que eu tenho herdado em
matéria de dons e recursos naturais. Nenhum de nós está isento do poder da alma
e a nossa primeira necessidade é reconhecê-lo por aquilo que é.
Tomemos a mente humana como
exemplo. Posso ter, por natureza, uma mente viva. Já a tinha antes do meu novo
nascimento, como algo derivado do meu nascimento natural. Mas é aqui que
reside o problema. Converto-me, nasço de novo, uma obra profunda é realizada no
meu espírito, uma união essencial foi operada com o Pai dos espíritos. Daí em
diante, há em mim duas coisas: tenho agora união com Deus, que foi
estabelecida no meu espírito, mas, ao mesmo tempo, continuo a levar comigo
alguma coisa que derivei do meu nascimento natural. Ora, o que vou fazer a
respeito disso?
A tendência natural é esta:
inicialmente, eu costumava usar a minha mente para esquadrinhar a história, os
negócios, a química, as questões do mundo, a literatura, ou a poesia. Usava a
minha mente viva para tirar o melhor proveito destes estudos. Mas agora, os
meus desejos mudaram de maneira que, daqui em diante, emprego a mesma mente nas
coisas de Deus. Portanto, mudei o assunto que ocupa o meu interesse, mas não
mudei o meu método de agir. Aí está o problema total. Os meus interesses
foram mudados de uma forma absoluta (e graças a Deus por isso!) mas agora eu
emprego o mesmo poder para estudar Coríntios e Efésios que usava antes para me
dedicar à história e à geografia. Mas esse poder não é de Deus, e Deus não
permitirá isso. O problema, para muitos de nós, é que mudamos o canal para o
qual as nossas energias se dirigem, mas não mudamos a fonte dessas energias.
Verificaremos que há muitas
dessas coisas que transferimos para o serviço de Deus. Consideremos a questão
da eloqüência. Há alguns homens que nascem oradores; podem apresentar um caso
de forma realmente convincente. Depois, convertem-se e, sem inquirirmos qual a
posição em que de fato se acham em relação às coisas espirituais, colocamo-los
no púlpito, constituindo-os pregadores. Encorajamo-los a usar os seus poderes
naturais na pregação e, de novo, o que se verifica? Urna mudança de assunto,
o poder, porém, é o mesmo. Esquecemo-nos de que, na questão dos recursos que
possuímos para tratar das coisas de Deus, a questão não é de valor comparativo
mas de origem — de onde dimanam os recursos que usamos. O problema não
está tanto no que fazemos, mas nos poderes que empregamos para fazê-lo. Pensamos
muito pouco a respeito da fonte da nossa energia, e pensamos demais no fim para
que ela se dirige, esquecendo-nos de que, com Deus, os fins nunca justificam
os meios.
O seguinte caso hipotético
nos ajudará a demonstrar a verdade do nosso argumento. O Sr. A é um orador
muito bom: pode falar fluentemente e com a maior convicção sobre qualquer
assunto, mas, em questões práticas, é um homem de desempenho fraco. O Sr. B.,
pelo contrário, é um orador pobre ;não consegue se expressar com clareza; por
outro lado, é um esplêndido homem de ação, muito competente em todas as
questões de negócios. Ambos estes homens se convertem e ambos se tornam
cristãos fervorosos. Suponhamos agora que chamo os dois e lhes peço que falem
numa convenção, e que ambos aceitam.
O que acontecerá agora? Pedi
a mesma coisa a ambos, mas, quem pensa você que vai orar mais intensamente? O
Sr. B., certamente. Por quê? Porque ele não é bom orador. No que se refere à
eloqüência, ele não tem recursos próprios de que dependa. Oraiá: "Senhor,
se não me deres poder para fazer isto, não poderei fazê-lo". Evidentemente,
o Sr. A. também orará, mas talvez não o faça da mesma forma que o Sr. B.,
porque ele tem alguns recursos naturais em que pode confiar.
Agora, suponhamos que, em vez
de lhes pedir para falar, peço aos dois que tomem conta das questões de ordem
prática e material da convenção. O que acontecerá? A posição será exatamente o
reverso. Será agora o Sr. A, que se dedicará mais intensamente à oração, porque
ele sabe perfeitamente bem que não tem capacidade organizadora. O Sr. B.,
evidentemente, também orará, mas talvez sem a mesma qualidade de urgência
porque, embora reconheça a sua necessidade do Senhor, ele não se acha tão
consciente da sua necessidade em questões materiais como o Sr. A.
Você percebe a diferença
entre os dons naturais e espirituais? Qualquer coisa que possamos fazer sem
oração e sem uma dependência extrema de Deus, deverá certamente ser suspeitada
como provindo daquela fonte de vida natural. Devemos compreender isto
claramente. Evidentemente, isto não quer dizer que somente se deve indicar para
um trabalho especial aqueles a quem falta o dom natural para fazê-lo. A questão
é que, quer dotados ou não de dons naturais, devem conhecer o toque da Cruz,
numa experiência de morte, sobre tudo o que é natural, e devem experimentar
completa dependência do Deus da ressurreição. Às vezes estamos prontos a sentir
inveja do dom muito notável do nosso próximo, sem reconhecer que se nós
possuíssemos este dom, independentemente da operação da Cruz já descrita, o
próprio dom poderia ser um empecilho àquilo que Deus quer manifestar em nós.
Pouco depois da minha
conversão, saí pregando nas aldeias. Recebera uma boa instrução e estava bem
versado nas Escrituras, de modo que me considerava absolutamente capaz de
instruir o povo nas aldeias, entre o qual havia um bom número de mulheres
analfabetas. Mas, depois de algumas visitas, descobri que, apesar da sua
ignorância, aquelas mulheres tinham um conhecimento íntimo do Senhor. Eu
conhecia o Livro que elas liam com muita dificuldade; elas conheciam Aquele de
Quem o livro fala. Eu tinha muito da carne; elas tinham muito do Espírito. Há
tantos educadores cristãos hoje que ensinam outras pessoas como eu então o
fazia: dependendo, em grande parte, do poder do seu equipamento carnal.
Não quero dizer que não
podemos fazer uma série de coisas, porque na verdade podemos. Podemos fazer reuniões
e construir casas de oração, podemos ir aos confins da Terra e fundar missões,
e pode parecer que damos fruto; mas lembremo-nos, a Palavra do Senhor diz:
"Toda planta que o meu Pai celestial não plantou, será arrancada"
(Mt 15.13). Deus é o único originador legítimo do Universo (Gn 1.1). Qualquer
coisa elaborada por nós tem a sua origem na carne e nunca alcançará a
esfera do Espírito, por mais fervorosamente que busquemos a bênção de Deus
sobre ela. Pode durar anos e então podemos pensar que, fazendo ajustamentos
aqui e ali, talvez possamos colocar essa iniciativa num plano melhor, mas não
se pode fazer tal coisa.
A origem determina o destino,
e o que originalmente foi "da carne", nunca se tornará espiritual,
por mais que se procure aperfeiçoá-lo. Aquilo que é nascido da carne, é carne,
e nunca será doutra forma. Qualquer coisa que contribui para a nossa
"auto-suficiência" é "nada" na estimativa de Deus, e temos
que aceitar essa estimativa e registrar que o seu valor é, realmente, nada.
"A carne para nada aproveita". É apenas o que vem de cima que
permanecerá.
Este não é um assunto que se
aprende através da sua simples apresentação: só Deus pode nos fazer entender do
que se trata, quando indica algo em nossas vidas, dizendo: "Isto é
meramente natural, e sua origem é a velha criação, e não pode
permanecer". Antes de Ele assim fazer, talvez concordemos com tal
doutrina, sem, porém, a sentir em nossa vida. Podemos aprovar o ensino, e até
mesmo ter prazer nele, sem, porém, chegar a realmente sentir repugnância por
aquilo que somos em nós mesmos.
Chegará, porém, o dia em que
Deus abrirá os nossos olhos. Encarando determinada circunstância, teremos que
dizer, como resultado da revelação: "Isto é impuro, impuro mesmo; Senhor,
agora é que percebo isto". A palavra "pureza" é uma palavra
abençoada. Associo-a sempre com o Espírito. Pureza significa alguma coisa
inteiramente do Espírito. A impureza significa mistura. Quando Deus abre os
nossos olhos e nos capacita a perceber que a vida natural é algo que Ele nunca
pode usar na Sua obra, então verificamos que já não consideramos com prazer
esta doutrina. Antes, nos aborrecemos a nós mesmos, pela impureza que há em
nós; mas, quando se atinge esta posição, Deus começa o Seu trabalho de libertação."
A luz de Deus e o conhecimento
Evidentemente, se alguém não
se propõe a servir ao Senhor de todo o coração, não sente necessidade de luz. É
só quando alguém foi chamado por Deus e procura avançar com Ele que sente
grande necessidade da luz.
Precisamos urgentemente de Luz, a fim de
conhecermos a mente do Senhor, para distinguirmos entre as coisas do Espírito e
as da alma; para saber o que é
divino e o que é meramente do homem; para discernir o que é verdadeiramente
celestial e o que é apenas terreno; para compreender a diferença entre o que é
espiritual e o que é carnal; para saber se realmente estamos sendo guiados por
Deus, ou se andamos pelos nossos próprios sentimentos, sentidos ou
imaginações. Achamos que a luz é a coisa mais necessária na vida cristã, quando
atingimos a posição em que desejamos seguir plenamente a Deus.
Nas minhas conversas com
jovens irmãos e irmãs, há uma pergunta que surge repetidamente: "Como
posso saber que estou andando no Espírito? "Como vou distinguir quais os
impulsos, dentro de mim, que são do Espírito Santo e quais os que provêm de
mim mesmo? " Parece que todos são unânimes nisso, embora alguns vão mais
longe. Procuram olhar para dentro de si, a fim de diferenciar, discriminar,
analisar e, ao fazê-lo, colocam-se a si mesmos numa escravidão mais profunda.
Ora, esta é uma situação que realmente é perigosa na vida cristã, porque o
conhecimento interior nunca se alcançará por meio dessa vereda árida do exame
próprio.
A Palavra de Deus não nos
manda examinar a nossa condição interior; esse caminho conduz apenas à incerteza,
à vacilação e ao desespero. É certo que devemos ter o conhecimento de nós
mesmos. Temos que conhecer o que se passa em nosso íntimo. Não queremos ter a
alegria dos que não sabem a verdadeira situação perigosa, errando sem
reconhecer o erro, exercendo a nossa vontade própria e ainda pensando ser esta
a vontade de Deus. Este conhecimento de nós mesmos, no entanto, não resulta de
olharmos o nosso próprio íntimo; não vem como resultado da nossa análise dos
nossos sentimentos e motivos e de tudo quanto se processa no nosso íntimo; não
é assim que se descobre se estamos andando na carne ou no Espírito.
Há várias passagens nos
Salmos que iluminam este assunto. A primeira é o Salmo 36.9: "Na tua luz,
veremos a luz". Há duas luzes aqui. Ha a "Tua luz", e, depois,
quando entramos nesta luz, "veremos a luz".
Ora, estas duas luzes são
diferentes. Podíamos dizer que a primeira é objetiva e a segunda subjetiva. A
primeira luz é a luz que pertence a Deus, e que Ele derrama sobre nós; a
segunda é o conhecimento comunicado por essa luz. "Na tua luz veremos a
luz": conheceremos alguma coisa, seremos esclarecidos a respeito de algo,
perceberemos. Nunca chegaremos à posição de vermos claramente, por meio
do exame auto-introspectivo ; só veremos quando há luz proveniente de
Deus.
Penso que isto é muito
simples. Se quisermos verificar se o nosso rosto está limpo, o que devemos
fazer? Procuramos apalpá-lo, cuidadosamente, com as mãos? Evidentemente que
não. Procuramos um espelho e trazemo-lo para a luz. À luz, tudo se torna claro.
Nada vemos por meio das sensações ou da análise. Somente é possível nos ver
mediante a manifestação da luz de Deus; uma vez que brilha a luz de Deus, já
não é mais necessário perguntar se determinada coisa está certa ou errada, porque
já o sabemos.
Relembremo-nos do que diz o
escritor de Salmo 139. 23: "Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu
coração". Certamente não sou eu que me sondo a mim mesmo — Quem me sonda
é Deus; é este o meio de iluminação. É Deus que Se manifesta e me sonda; não me
cabe a mim sondar-me. Evidentemente, isso nunca significará que vou prosseguir
cega e descuidadamente a respeito da minha verdadeira condição. Não é essa a
idéia. A questão é que, por muito que o meu auto-exame possa revelar, a meu
respeito, que eu necessito de correção, ele nunca poderá ir muito além da
superfície. O verdadeiro conhecimento de mim mesmo não resulta de um
auto-exame, mas do exame que Deus faz de mim.
Perguntar-se-á o que
significa, na prática, entrar na luz? Como é que isto opera? Como é que vemos
luz na Sua luz? Uma vez mais o salmista vem ajudar-nos; "A revelação das
tuas palavras esclarece (dá luz); dá entendimento aos simples" (Salmo
119.30). Nas coisas espirituais, todos somos "simples". Dependemos
de Deus para recebermos dEle, de forma muito especial, entendimento a respeito
da nossa verdadeira natureza. É neste sentido que opera a Palavra de Deus. No
Novo Testamento, a passagem que o declara, de forma mais acessível, se
encontra na Epístola aos Hebreus: "Porque a palavra de Deus é viva e eficaz,
e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de
dividir alma e espírito, juntas e medulas, e apta para discernir os pensamentos
e propósitos do coração. E não há criatura que não seja manifesta na sua
presença; pelo contrário, todas as cousas estão descobertas e patentes aos
olhos daquele a quem temos que prestar contas" (Hb 4. 12,13). Sim, é a
Palavra de Deus, a penetrante Escritura da Verdade, que resolve as nossas
perguntas. É ela que discerne os nossos motivos e revela se a sua verdadeira
origem é alma ou o espírito.
Com isto, podemos partir para
o aspecto prático das coisas. Muitos de nós, estou certo, vivemos honestamente
diante de Deus. Temos feito progresso e não conhecemos qualquer coisa, em nós,
que possa ser considerada muito errada. Então, um dia, à medida que prosseguimos,
deparamos com o cumprimento daquela palavra: "A revelação das tuas
palavras esclarece". Deus usou algum dos Seus servos para nos confrontar
com a Sua Palavra viva, e essa Palavra entrou em nós. Ou, talvez, nós mesmos
temos esperado em Deus e, quer por meio das Escrituras memorizadas, quer pela
leitura da Bíblia, a Sua Palavra vem a nós em poder. É então que vemos algo que
nunca viramos antes. Ficamos convictos. Sabemos onde estamos errados e olhamos
para cima e confessamos: "Senhor, agora entendo. Há impurezas neste
assunto. Há uma mistura. Como eu estava cego! E pensar que durante tantos anos
estive errado, sem disso ter consciência!" A luz se manifesta, e nós
vemos a luz. A luz de Deus nos leva a ver a luz a respeito de nós mesmos e, é
princípio permanente que todo o conhecimento de nós mesmos nos sobrevém desta
forma.
Talvez nem sempre sejam as
Escrituras que operam isto. Alguns de nós temos conhecido santos que conheciam
de perto o Senhor por termos orado ou conversado com eles, e, nesta intimidade,
no meio da luz de Deus que deles se irradiava, chegamos a perceber algo que nunca
tínhamos visto antes. Encontrei-me com uma destas pessoas, que agora está com o
Senhor, e sempre penso nela como sendo uma cristã fervorosa. Mal entrava no
quarto dela, ficava imediatamente cônscio da presença de Deus. Naqueles dias,
era eu muito jovem, convertera-me havia dois anos, e tinha uma série de planos,
de belos pensamentos, de esquemas, de projetos para o Senhor sancionar,
inúmeras coisas que pensava que seria maravilhoso se chegassem a frutificar, e
dirigi-me a ela para procurar persuadi-la de que deveria fazer isto ou aquilo.
Antes que pudesse abrir a
boca, ela dizia apenas algumas palavras de modo absolutamente normal. A luz
raiava! Sentia-me simplesmente envergonhado. O meu "fazer" era tão
natural, tão cheio do homem! Alguma coisa acontecia. Era levado a uma posição
em que podia dizer: "Senhor, a minha mente apenas se prende a atividades
humanas. Mas eis aqui alguém que não está, de forma alguma, envolvida
nelas". Ela apenas tinha um motivo, um desejo, e esse era Deus. Escrita na
capa da sua Bíblia estavam estas palavras: "Senhor, não quero nada para
mim". Sim, ela vivia apenas para Deus, e onde quer que encontremos um caso
semelhante, verificaremos que essa pessoa está banhada em luz, e que essa luz
ilumina os outros. Isto, realmente, é testemunhar.
A luz tem uma lei: brilha
onde quer que seja admitida. Esta é a única condição. Nós temos a possibilidade
de excluí-la de nós mesmos; ela nada mais teme senão a exclusão da nossa parte.
Se nos mantivermos abertos para Deus, Ele nos revelará o nosso íntimo. O
problema surge quando mantemos áreas fechadas e lugares cerrados e trancados em
nossos corações, quando orgulhosamente pensamos que temos toda a razão. A nossa
derrota não consiste em estarmos errados, mas em não sabermos que estamos
errados. Estar errado pode ser questão de força natural; a ignorância de
que se está errado é questão de luz. Podemos ver a força natural em outras
pessoas, mas elas não podem vê-la em si mesmas. Como necessitamos de sermos
sinceros e humildes, e de nos abrirmos diante de Deus! Só aqueles que se abrem
poderão ver. Deus é luz, e não podemos viver na Sua luz e ainda ficar sem entendimento.
Digamos, outra vez, com o Salmista: "Envia a tua luz e a tua verdade, para
que me guiem" (Salmo 43.3).
Damos graças a Deus porque
hoje a atenção dos crentes é chamada para a realidade do pecado mais do que
antes. Em muitos lugares, os seus olhos tem-se aberto para ver a vitória sobre
os pecados, como experiência separada de grande importância na vida cristã, e,
em conseqüência disso, muitos estão andando mais perto do Senhor, procurando
libertação e vitória sobre os mesmos. Graças a Deus por qualquer movimento para
Ele, qualquer movimento de regresso a uma verdadeira santidade perante Deus!
Isto, porém, não é suficiente. Há ainda uma coisa em que se deve tocar: a
própria vida do homem, e não meramente os seus pecados. A questão da personalidade
do homem, do poder da sua alma, é o coração do problema. Considerar que os
pecados constituam a totalidade do problema, equivale a ficar ainda à
superfície. A santidade, se apenas levarmos em conta os pecados, é, ainda, uma
experiência exterior e superficial. Nesse caso, ainda não atingimos a raiz do
problema.
Adão deixou o pecado entrar
no mundo ao escolher o desenvolvimento do seu próprio-eu, da sua alma, separadamente
de Deus. Quando, pois, Deus alcançar uma raça de homens que será para a Sua
própria glória, e que será Seu instrumento para realizar os Seus propósitos no
Universo, será uma raça cuja vida - sim, até a própria respiração — estará na
total dependência dEle. Ele será, para esta raça, "a árvore da vida".
A necessidade que sinto
sempre mais, em mim mesmo e entre todos os filhos de Deus, é a revelação real
de nós mesmos, que devemos pedir da parte de Deus. Já disse que não se trata de
sempre esquadrinharmos o nosso próprio íntimo, perguntando se isto ou aquilo
vem da alma ou do Espírito. Esta atitude não terá qualquer resultado prático,
pois é escuridão. Não, a Escritura nos mostra como os santos chegaram ao
conhecimento de si mesmos. Foi sempre pela luz de Deus, luz que é o próprio
Deus. Isaías, Ezequiel, Daniel, Pedro, Paulo, João: todos chegaram a possuir
verdadeiro conhecimento de si mesmos porque a luz do Senhor brilhou sobre
eles, trazendo-lhes revelação e convicção (Is 6.5; Ez 1. 28; Dn 10.8; Lc
22.61,62; At 9.3-5; Ap 1.17).
Nunca conheceremos a
hediondez do pecado e as nossa própria hediondez sem que haja uma manifestação
da luz de Deus sobre nós. Não falo de uma sensação e, sim, de uma revelação que
o Senhor faz ao nosso íntimo, através da Sua Palavra. Isto fará por nós o que a
doutrina, por si só, nunca poderia fazer.
Cristo é a nossa luz, a
Palavra viva que nos traz revelação enquanto lemos as Escrituras: "A vida
era a luz dos homens" (João 1.4). Tal iluminação talvez nos sobrevenha
apenas gradualmente, mas será cada vez mais clara e nos sondará mais e mais
perfeitamente até que nos vejamos na luz de Deus que dissipará toda a nossa
confiança própria. A luz é a coisa mais pura do mundo. Purifica. Esteriliza.
Matará tudo o que não deve estar presente, transformando em realidade a
doutrina da "divisão de juntas e medulas". Conheceremos o temor e
tremor na medida em que reconhecermos a corrupção da natureza humana, a
hediondez da nossa própria personalidade, e a ameaça real que representa para a
obra de Deus a energia e vida insubordinada da alma. Como nunca antes, vemos agora
quão necessária nos é aquela ação drástica de Deus, se realmente quisermos ser
usados, e sabemos que, sem Ele, somos inúteis como servos de Deus.
Aqui também, a Cruz, no seu
sentido mais amplo, nos auxiliará, e passaremos agora a examinar o aspecto da
sua obra que diz respeito ao problema da alma humana. Somente a compreensão
completa da Cruz pode nos levar àquela posição de dependência que o próprio
Senhor Jesus voluntariamente assumiu, quando disse: "Eu nada posso fazer
por mim mesmo; na forma por que ouço, julgo. O meu juízo é justo porque não
procuro a minha própria vontade, e, sim, a daquele que me enviou" (João
5.30).
13
A
vereda do progresso:
levando
a Cruz
Tendo mencionado a questão do
nosso serviço prestado ao Senhor, consideraremos agora a provisão feita por
Deus quanto ao problema criado pela vida da alma do homem, examinando
primeiramente o problema como tal. Deus estabeleceu princípios específicos que
governam o serviço que fazemos para Ele, dos quais não podem se desviar os
que quiserem servi-Lo. A base da nossa salvação, como bem o sabemos, é o fato
da morte e da ressurreição do Senhor, e a base do nosso serviço cristão não é
menos definida: é o princípio da morte e da ressurreição.
A base de todo o ministério verdadeiro
Ninguém pode ser um
verdadeiro servo de Deus sem conhecer o princípio da morte e o princípio de
ressurreição. O próprio Jesus serviu nessa base. Verificaremos em Mateus 3
que, antes de o Seu ministério começar, o nosso Senhor foi batizado, e isto
não porque tivesse qualquer pecado ou qualquer coisa que precisasse de purificação.
Não; o batismo é uma figura de morte e de ressurreição. O ministério do Senhor
não começou até que Ele Se encontrasse neste plano. Depois de Ele ter sido batizado,
voluntariamente assumindo a posição de morte e ressurreição, é que o Espírito
Santo veio sobre Ele, e, após essa experiência, Ele entrou no ministério.
O que nos ensina isto? Nosso
Senhor foi um Homem sem pecado. Nenhum outro homem pisou a terra sem conhecer o
pecado. Todavia, como Homem, Ele tinha uma personalidade separada do Pai. Quando Jesus
disse: "Não busco a minha própria vontade, mas a vontade daquele que me
enviou", não queria negar que possuísse vontade própria; como filho do
homem, tinha-a, mas não a exerceu, porque veio fazer a vontade do Pai. Aquilo
que nEle é distinto do Pai é a alma humana, que recebeu quando "foi
reconhecido em figura humana". Sendo homem perfeito, nosso Senhor tinha
uma alma e um corpo como você e eu os temos, e era-Lhe possível agir mediante
os recursos da alma — isto é, agir de Si e por Si mesmo.
Recordamos que, imediatamente
após o batismo do Senhor, e antes do começo do Seu ministério público, Satanás
veio tentá-Lo. Tentou-O a satisfazer as Suas necessidades essenciais,
convertendo as pedras em pão; a alcançar o respeito pelo Seu ministério,
aparecendo miraculosamente no pátio do Templo; a assumir, sem demora, o
domínio mundial que Lhe estava destinado; e sentimo-nos inclinados a inquirir
das razões que o levaram a tentar o Senhor a fazer coisas tão estranhas.
Podia, pensamos, tentá-Lo antes a pecar de forma mais eficaz. No entanto não o
fez. Satanás apenas disse ao Senhor: "Se tu és o Filho de Deus, manda
que estas pedras se tornem em pão". O que significava isto? A implicação
era esta: "Se Tu és o Filho de Deus, deves fazer alguma coisa para
prová-lo. Eis um desafio. Alguns certamente objetarão que a Tua reivindicação
pode não ser real. Por que não esclareces o assunto agora, de forma conclusiva,
manifestando-Te e provando-o?"
A intenção subtil de Satanás
era levar o Senhor a agir por Si mesmo — isto é, com base na alma — e, pela
atitude que assumiu, o Senhor Jesus repudiou totalmente tal ação. Em Adão, o
homem agira por si mesmo, separadamente de Deus; daí resultou toda a tragédia
do Jardim. Agora, numa situação semelhante, o Filho do Homem toma uma atitude
bem diferente. Mais tarde, Ele a define como princípio fundamental de vida
para Ele — e gosto da palavra no Grego: "O Filho nada pode fazer para
fora de si mesmo" (João 5.19). Esta total negação da vida da alma
governou todo o Seu ministério.
Podemos, portanto, dizer com
toda a segurança que toda a obra que o Senhor Jesus fez na Terra, antes da Sua
morte na Cruz, foi feita tendo por base o princípio de morte e ressurreição,
embora, como acontecimento real, o Calvário ainda se situasse no futuro. Tudo o
que Ele fez foi neste plano. Mas, se o Filho do homem tem que passar pela morte
e ressurreição (em figura e em princípio) a fim de realizar a Sua obra, pode
acontecer conosco de forma diferente? Nenhum servo do Senhor pode servi-Lo sem
conhecer, na sua própria vida, a operação daquele princípio.
O Senhor esclareceu isto
muito bem aos Seus discípulos quando os deixou. Ele morrera e ressuscitara e
disse-lhes que esperassem em Jerusalém a vinda do Espírito sobre eles. O que é
este poder do Espírito Santo, este "poder do alto" de que Ele falou?
É nada menos do que a virtude da Sua morte, ressurreição e ascensão. O Espírito
Santo é, figuradamente falando, o Vaso em que todos os valores da morte,
ressurreição e exaltação do Senhor estão depositados, para que possam ser
ministrados a nós. É o único que "contém" aqueles valores, e que os
administra aos homens. Esta é a razão por que o Espírito não podia ser dado
antes de o Senhor ser glorificado. Somente então poderia Ele repousar sobre
homens e mulheres, para que estes pudessem testemunhar: e, sem os valores da
morte e da ressurreição de Cristo, não é possível tal testemunho.
Se voltarmos ao Antigo
Testamento, acharemos ali a mesma verdade. Refiro-me a uma passagem familiar no
capítulo 17 de Números. Contestou-se o ministério de Arão, perguntando-se entre
o povo se era ele verdadeiramente o escolhido de Deus, e assim, Deus vai
provar quem é Seu servo e quem não é. Como o faz? Doze varas mortas são
colocadas perante o Senhor no santuário, diante do testemunho, e ficam ali
durante uma noite. Na manhã seguinte, o Senhor indica o Seu servo escolhido por
meio da vara que se cobre de renovos, que floresce e frutifica.
Todos conhecemos o significado
disto. A vara que floresceu fala da ressurreição. É a morte e a ressurreição que
marcam o ministério reconhecido por Deus. Sem isso, nada temos. O florescimento
da vara de Arão provou que ele baseava seu serviço no princípio certo, pois
Deus somente reconhece como ministros Seus os que passaram pela morte para o
alicerce da ressurreição.
Já vimos que a morte do
Senhor opera de várias, maneiras diferentes, e tem aspectos diferentes.
Sabemos como a Sua morte operou no que diz respeito ao perdão dos nossos
pecados. Todos sabemos que o nosso perdão se baseia no Sangue derramado e que,
sem o derramamento de Sangue, não há remissão. Depois, fomos mais longe e, em
Romanos 6, vimos como a morte opera para vencer o poder do pecado. Aprendemos
que o nosso homem velho foi crucificado a fim de que, daqui em diante, não
sirvamos mais ao pecado, e rendamos louvores ao Senhor pela nossa libertação,
conseguida através da Sua morte. Mais tarde ainda, surge a questão da vontade
própria do homem, e torna-se evidente a necessidade da consagração, e percebemos
que neste assunto também, a morte opera, levando-nos a abdicar das nossas
vontades próprias e a obedecer ao Senhor. É justamente semelhante morte que
constitui o ponto de partida para o nosso ministério, mas ainda não toca o
âmago da questão, porque ainda pode haver ignorância quanto ao significado da
alma.
Em seguida, em Romanos 7,
focalizando a questão da santidade da vida, uma nova fase se nos apresenta de
santidade pessoal e viva sendo procurada por um verdadeiro homem de Deus que
procura agradar a Deus em justiça; acha-se sob a Lei, e a Lei o confunde.
Quando quer agradar a Deus mediante o seu próprio poder carnal, a Cruz tem que
levá-lo à atitude de dizer: "Não posso satisfazer a Deus mediante o emprego
dos meus próprios poderes; apenas posso confiar no Espírito Santo para fazê-lo
em mim". Creio que alguns de nós temos passado por águas profundas para
aprender isto, para descobrir o valor da morte do Senhor operando desta
maneira.
Note-se que há ainda uma grande
diferença entre "a carne", como é referida em Romanos 7, em relação à
santidade de vida, e a operação das energias naturais da vida da alma no
serviço do Senhor. Conhecendo-se tudo o que precede — e conhecendo-se em
experiência — ainda resta mais esta esfera, em que a morte do Senhor tem que
entrar, antes que sejamos realmente úteis no Seu serviço. Mesmo com todas as
experiências anteriores, ainda não estamos em condições de sermos usados por
Ele, até que tenhamos esta nova experiência. Quantos dos servos de Deus são
usados por Ele, como dizemos na China, para edificar quatro metros de parede,
para, após o terem feito, derrubarem por si mesmos cinco metros! Somos usados
de certa maneira, mas, ao mesmo tempo, destruímos a nossa própria obra e, às vezes,
também a dos outros, por existir ainda em nós alguma coisa que não foi
transformada pela Cruz.
Temos que ver agora como o
Senhor Se propõe a tratar da alma e, em seguida, como isto afeta a questão do
nosso serviço prestado a Ele.
A operação
subjetiva da Cruz
Devemos conservar agora
diante de nós quatro passagens dos Evangelhos: Mt 10.34-39; Mc 8.32-35; Lc 17.
32-35 e João 12.24-26. Estas quatro passagens têm algo em comum. Em cada uma
delas, o Senhor nos fala acerca da atividade da alma do homem, e algo se diz
quanto a algum aspecto ou manifestação da vida da alma. Nestes versículos Ele
mostra claramente que há uma só maneira de encarar a alma e tratar do problema,
e esta consiste em levarmos a Cruz cada dia e em O seguirmos.
A vida da alma, ou seja, a
vida natural, que aqui estamos considerando, é algo mais do que aquilo que diz
respeito ao velho homem ou à carne, nas passagens que já estudamos. Quanto ao
homem velho. Deus salienta aquilo que Ele fez, de uma vez para sempre, ao
crucificar-nos com Cristo na Cruz. Vimos que três vezes, na Epístola aos Gálatas,
se faz referência ao aspecto "crucificante" da Cruz, como algo
realizado e cumprido; e, em Rm 6.6, declara-se patentemente que "foi
crucificado com ele o nosso velho homem", e, parafraseando da seguinte
maneira que leva em conta o significado do tempo do verbo, podemos dizer:
"O nosso homem velho foi crucificado, finalmente e para sempre". É
algo que está feito, que deve apreender-se por revelação divina e de que
devemos nos apropriar pela fé.
Há, porém, um novo aspecto da
Cruz, o que está implícito nessa expressão "tomar a sua cruz cada
dia". A Cruz levou-me sobre ela; agora eu devo levá-la; esta ação de levar
a cruz é algo que faço no meu íntimo. É isto que queremos dizer quando falamos
da "operação subjetiva da Cruz". Além disso, é um processo diário; é
a atitude de segui-Lo, passo a passo. Não se trata aqui da
"crucificação" da própria alma, no sentido de que os nossos dons e
faculdades naturais, a nossa personalidade e a nossa individualidade, têm que
ser inteiramente deixados de lado. Se assim fosse, dificilmente poderia
dizer-se a nosso respeito, como em Hb 10.39, que devemos ter fé "para a
conservação da alma" (comparar I Pe 1.9; Lc 21.19). Não, não perdemos as
nossas almas, neste sentido, porque, se assim fosse, isso significaria perder
completamente a nossa existência individual. A alma ainda está presente com os
seus talentos naturais, mas a Cruz é chamada a exercer a sua ação sobre ela,
com o fim de levar à morte aqueles talentos naturais - e pôr a marca da Sua
morte sobre eles — e depois, como agradar a Deus, restituir-nos os mesmos
talentos pela ressurreição.
É neste sentido que Paulo,
escrevendo aos Filipenses, expressa o desejo: "Para o conhecer e o poder
da sua ressurreição e a comunhão dos seus sofrimentos, conformando-me com ele
na sua morte" (Fp 3.10). A marca da morte está continuamente sobre a alma,
para trazê-la à atitude de subordinação ao Espírito e de nunca se afirmar
independentemente dEle. Somente a Cruz, operando desta maneira, podia fazer um
homem do calibre de Paulo e com os recursos naturais referidos em Filipenses 3,
perder de tal maneira a sua força própria e natural que chegasse a escrever aos
Coríntios: "Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e
este crucificado. E foi em fraqueza, temor e grande tremor que eu estive entre
vós. A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem
persuasiva de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder." (I
Co 2.24).
A alma é o centro das
afeições e a grande parte das nossas decisões e ações é por ela influenciada.
Note-se que nada há de deliberadamente pecaminoso nelas; trata-se, porém, de
haver em nós algo que se pode prender em afeição natural a outra pessoa e que,
como resultado pode influenciar erradamente todo o curso da nossa ação. Assim
sendo, o Senhor nos diz: "Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim,
não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim, não é
digno de mim; e quem não toma a sua cruz, e vem após mim, não é digno de
mim" (Mt 10.37,38). Notemos que aqui se demonstra que seguir o Senhor, no
caminho da Cruz, é o Seu plano normal para nós, o único caminho que Ele nos
aponta. Qual é o resultado imediato? "Quem acha a sua vida, perdê-la-á;
quem, todavia, perde a vida por minha causa, achá-la-á" (Mt 10.39).
O perigo oculto está naquela
obra subtil das afeições que nos desvia do caminho de Deus; e a chave da questão
está na alma. A Cruz tem que tratar disso. Eu tenho que "perder" a
minha alma, no sentido em que o Senhor empregou aquelas palavras e que
procuraremos explicar aqui.
Alguns de nós conhecemos bem
o que significa perder a alma. Já não podemos satisfazer os seus desejos; não
podemos ceder às suas instâncias; não podemos gratificá-la: é isto a
"perda" da alma. Passamos por um processo doloroso para desencorajar
aquilo que a alma pede. E muitas vezes temos que confessar que não é um pecado
específico que nos impede de seguir o Senhor até o fim. Somos detidos por causa
de algum amor secreto, e alguma afeição perfeitamente natural nos desvia da
nossa carreira. Sim, a afeição desempenha um papel muito grande em nossas
vidas, e a Cruz tem que intervir nisto e fazer a sua obra.
Passamos agora à referência
em Mc 8.31. O nosso Senhor acabara de ensinar aos Seus discípulos em Cesaréia
de Filipos que Ele morreria nas mãos dos anciãos dos judeus, e, então, Pedro,
com todo o seu amor pelo Seu Mestre, insurgiu-se e censurou-O, dizendo-Lhe:
"Senhor não faças isso; tem pena de Ti:isso nunca Te acontecerá!' Levado
pelo seu amor pelo Senhor, apelou para Ele, para que Se poupasse; e o Senhor
repreendeu Pedro como se estivesse repreendendo Satanás, por cogitar das coisas
dos homens e não das coisas de Deus (Mc 8.31-33). Falou então uma vez mais a
todos os presentes, nestes termos: "Se alguém quer vir após mim, a si
mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser, pois, salvar a sua
vida, perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho,
salvá-la-á" (Mc 8.34,35).
Mais uma vez é a alma que
está sendo focalizada, e aqui se trata especialmente do desejo da alma pela
auto--preservação.Há aquela atuação sutil da alma que diz: "Se me fosse
permitido viver, faria tudo, estaria pronto a tudo; devo certamente, ser
conservado vivo". E assim temos a alma quase gritando por socorro:
"Ir à Cruz, ser crucificado — isso é realmente demais! Tem misericórdia
de ti mesmo; tem pena de ti! Queres dizer que vais contra ti mesmo a fim de
ires com Deus? " Alguns de nós sabemos bem que, a fim de prosseguir com
Deus, muitas vezes é preciso ir contra a voz da alma — a nossa própria ou a de
outras pessoas — e deixar a Cruz intervir para silenciar aquele apelo por
auto-preservação.
Tenho eu receio da vontade de
Deus? Aquela querida santa que mencionei, e que tanta influência teve na minha
vida, perguntou-me, muitas vezes: "Gosta da vontade de Deus? " É uma
pergunta tremenda. Não perguntou: "Faz a vontade de Deus? " A
pergunta sempre era: "Gosta da vontade de Deus? " Esta
pergunta vai sondando mais profundamente do que qualquer outra. Recordo-me de
que, certa vez, ela tinha uma controvérsia com o Senhor a respeito de
determinado assunto. Sabia o que o Senhor desejava e, no seu coração, ela o
desejava também. No entanto, era-lhe difícil, e ouvi-a orar da seguinte
maneira: "Senhor, confesso que não gosto do que Tu queres mas, por favor,
não cedas ao meu sentimento. Espera apenas um pouco, Senhor, e eu me submeterei
inteiramente a Ti". Ela não queria que o Senhor cedesse a ela, diminuindo
o que exigia dela. Ela nada desejava senão agradar-Lhe.
Muitas vezes, temos que
chegar ao ponto de nos dispor a renunciar coisas que pensamos serem boas e
preciosas — sim, talvez mesmo as próprias coisas de Deus — para que a Sua
vontade possa ser feita. A preocupação de Pedro era pelo seu Senhor, e foi-lhe
ditado pelo seu amor por Ele. Podemos sentir que Pedro teve um amor maravilhoso
pelo seu Senhor, suficiente para lhe dar ousadia para repreendê-Lo. Somente um
forte amor poderia levar alguém a fazer o que ele fez! Sim, mas quando há
pureza de espírito, sem aquela mistura de alma, não se será levado a cometer
aquele erro de Pedro. Reconheceremos a vontade de Deus e verificaremos que é
esta a única coisa com que o nosso coração se regozija. Então, não derramaremos
uma lágrima sequer de simpatia pela carne. Sim, a Cruz faz um corte profundo, e
aqui percebemos, mais uma vez, quão severamente ela tem que tratar com a
alma.
Uma vez mais o Senhor Jesus
trata do assunto da alma, em Lucas 17, esta vez em relação ao Seu regresso. Falando
do "dia em que o Filho do homem se manifestar", Ele estabelece um
paralelismo entre esse dia e "o dia em que Ló saiu de Sodoma" (w
29,30). Um pouco mais adiante, referiu-Se ao "arrebatamento" com palavras
duas vezes repetidas: "um será tomado, e deixado o outro" (vv.34,35).
Mas, entre a Sua referência à chamada de Ló de Sodoma, e a alusão que fez ao
arrebatamento, o Senhor profere aquelas memoráveis palavras: "Naquele dia
quem estiver no eirado e tiver os seus bens em casa, não desça para tirá-los; e
de igual modo quem estiver no campo não volte para trás. Lembrai-vos da mulher
de Ló" (vv.31,32). Lembrai-vos da mulher de Ló! Por quê? Porque
"Quem quiser preservar a sua vida, perdê-la-á; e quem a perder, de fato a
salvará" (v.33).
Se não me engano, esta é a
única passagem no Novo Testamento que fala da nossa reação à chamada do Arrebatamento.
Podemos ter pensado que, quando o Filho do homem vier, seremos arrebatados
automaticamente, pelo que lemos em I Co 15.51,52: "Transformados seremos
todos, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao ressoar da última
trombeta..." Comparando as duas passagens, o que lemos em Lucas deve pelo
menos nos levar a pensar profundamente, pela sua forte ênfase no fato de um
ser tomado e outro deixado. Trata-se da nossa reação à chamada, fazendo-se
apelo muito urgente no sentido de estarmos prontos (comparar Mt 24.42).
Há, seguramente, uma razão
que explica isto. Evidentemente que aquela chamada não vai produzir em nós uma
mudança miraculosa no último minuto, independentemente de toda a nossa relação
prévia com o Senhor. Não, naquele momento, descobriremos o verdadeiro tesouro
do nosso coração. Se é o Senhor mesmo, então não haverá um olhar para trás. Um
relance para trás decide tudo. É tão fácil ficar mais apegado aos dons de Deus
do que ao próprio Doador — e até, acrescentaria, mais ligado ao trabalho de
Deus do que a Deus mesmo.
É uma questão de vivermos
pela alma ou pelo Espírito. Aqui nesta passagem, em Lucas, descreve-se a vida
da alma com seus compromissos com as coisas da terra — e, note-se, coisas que
não são pecaminosas. O Senhor apenas mencionou casar, semear, comer, vender —
todas atividades perfeitamente legítimas em que não há, essencialmente, coisa
alguma errada. Mas é a ocupação com as mesmas, ao ponto de o coração se lhes
prender, que é suficiente para nos prender aqui em baixo. O caminho de saída
deste perigo é por meio de se perder a alma. Encontramos uma bela ilustração
disto na ação de Pedro, quando reconheceu o Senhor Jesus ressurreto nas margens
do lago. Embora ele regressasse com os outros ao seu emprego inicial, agora já
não pensava no barco, nem sequer nas redes cheias de peixes, tão
miraculosamente pescados. Quando ouviu o grito de reconhecimento de João:
"É o Senhor", lemos que ele "lançou-se ao mar".
Este é um verdadeiro desapego
das coisas. A questão em causa é sempre: onde está o meu coração? A Cruz tem
que operar em nós um verdadeiro desapego espiritual de tudo e de todos quando
é o próprio Senhor que está em causa.
Mesmo nesta situação,
entretanto, ainda se trata dos aspectos mais exteriores da atividade da alma. A
alma dando largas às suas afeições, a alma impondo-se querendo manipular as
coisas, a alma que se preocupa com as coisas da terra: estas pequenas coisas
ainda não chegam ao âmago da questão. Há algo ainda mais profundo que agora
procurarei explicar.
A Cruz e a vida frutífera
Leiamos, de novo, João
12.24,25: "Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo, caindo na
terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, produz muito fruto. Quem ama a
sua vida (no Grego, "alma", como nas passagens anteriores)
perdê-la-á; mas aquele que odeia a sua vida (alma) neste mundo, preservá-la-á
para a vida eterna".
Trata-se aqui da operação
interior da Cruz que já mencionamos, ou seja, a perda da alma, relacionada e
assemelhada com o aspecto da morte do Senhor Jesus Cristo que já vimos sob o
símbolo do grão de trigo, a morte visando a frutificação. Há um grão de trigo
com vida em si mesmo mas "ele fica só". Tem o poder de comunicar vida
a outros; mas, para fazê-lo, tem que descer às profundezas da morte.
Ora, sabemos o caminho que o
Senhor Jesus tomou. Ele passou pela morte e, como já vimos, a Sua vida emergiu
em muitas vidas. O Filho morreu e apareceu como o primeiro de "muitos
filhos". Ele deu a Sua vida para que pudéssemos recebê-la. É neste aspecto
da Sua morte que somos chamados a morrer. É a este respeito que Ele torna
claro o valor de nos conformarmos com a Sua morte, o que equivale a dizer que
perdemos a nossa própria vida natural, a nossa alma, para que possamos
tornar-nos transmissores de vida, partilhando depois com os outros a nova vida
de Deus que está em nós. Este é o segredo do ministério. O caminho da
verdadeira frutificação para Deus. Como Paulo diz: "Porque nós, que vivemos,
somos sempre entregues à morte por causa de Jesus, para que também a vida de
Jesus se manifeste em nossa carne mortal. De modo que em nós opera a morte; mas
em vós, a vida" (II Co 4.11,12).
Se aceitamos a Cristo, há
nova vida em nós. Todos temos aquela possessão preciosa, o tesouro no vaso.
Graças a Deus pela realidade da Sua vida em nós! Mas, por que essa vida não se
expressa mais? Por que esta vida não está manando abundantemente, comunicando
vida aos outros? Por que se manifesta tão pouco mesmo nas nossas próprias
vidas? A razão por que há tão pouco sinal de vida, onde a vida está presente, é
que a alma, em nós, envolve e limita essa vida (como a casca envolve o grão de
trigo), de modo que ela não consegue achar saída. Estamos vivendo pela alma,
trabalhando e servindo na nossa própria força natural, ao invés de derivar de
Deus os nossos recursos. É a alma que impede a vida de emanar. Percamos
a alma, porque nesse caminho se encontra a plenitude.
Uma noite escura — uma manhã de
ressurreição
Voltemos à vara de amendoeira
que foi trazida ao santuário por uma noite — uma noite escura em que nada
havia que se visse — e que de manhã tinha florescido. Ali temos manifestadas a
morte e a ressurreição, a vida rendida e a vida ganha, e ali temos o ministério
comprovado. Mas como opera isto na prática? Como é que reconheço que Deus está
agindo desta maneira comigo?
Em primeiro lugar devemos ser
claros a respeito de uma coisa: a alma com o seu fundo de recursos e energias
naturais,continuará até a nossa morte. Até então, haverá a interminável e
diária necessidade de a Cruz operar em nós, dragando profundamente aquela
fonte natural que sempre está manando. Esta é a condição do serviço, válida
para toda a vida, que se expressa pelas palavras: "A si mesmo se negue,
tome a sua cruz e siga-me" (Mc 8.34). Nunca poderemos dispor dela. Aquele
que se evade aquela condição, "não é digno de mim" (Mt 10. 38); e,
"não pode ser meu discípulo" (Lc 14.27). A morte e a ressurreição
devem permanecer como um princípio das nossas vidas para a perda da alma e a
manifestação do Espírito.
Todavia, pode haver também
aqui uma crise que, uma vez ultrapassada, pode transformar toda a nossa vida e
serviço para Deus. É uma porta estreita pela qual podemos entrar num caminho
inteiramente novo. Uma crise desta natureza ocorreu na vida de Jacó em Peniel.
Era o "homem natural", em Jacó, que procurava servir a Deus e
alcançar os Seus propósitos. Jacó bem sabia que Deus dissera: "O mais
velho servirá o menor", mas ele procurava alcançar este objetivo por meio
da sua própria sutileza e dos seus recursos. Deus tinha que invalidar aquela
força natural em Jacó, o que se deu quando tocou no nervo da sua coxa; daí em
diante, Jacó continuou a andar, mas permaneceu coxo. Era um Jacó diferente, como
se infere da mudança do seu nome. Tinha pés e podia usá-los, no entanto, a sua
força fora tocada e ele coxeava por causa de um mal de que nunca se restabeleceria
completamente.
Deus tem que nos levar a tal
ponto que não ousemos confiar em nós mesmos, e isso fará, de uma maneira ou de
outra, ferindo profundamente o nosso poder natural por meio de uma experiência
profunda e amarga. Ele teve que tratar asperamente com alguns de nós,
levando-nos por caminhos difíceis e dolorosos, a fim de nos levar a tal
situação. Finalmente, chega o ponto de não "gostarmos" mais de fazer
o trabalho cristão — até quase receamos fazer coisas em nome do Senhor. Mas
então, finalmente, é que Ele pode começar a nos usar.
Posso mencionar que, durante
um ano depois que fui convertido, tinha um desejo veemente de pregar. Era-me
impossível ficar em silêncio. Era como se houvesse qualquer coisa movendo-se
dentro de mim, impelindo-me para a frente, e eu tinha que continuar. A
pregação tornara-se a minha própria vida. O Senhor pode graciosamente
permitir-nos andar algum tempo nestas condições - e não somente isso, mas com
uma certa medida de bênção até que um dia, essa força natural que nos impelia é
tocada, e, desde então, já não o fazemos porque o desejamos fazer, mas porque
o Senhor o deseja. Antes dessa experiência, pregávamos por causa da satisfação
que obtínhamos em servir a Deus dessa maneira; e, contudo, o Senhor não podia
mover-nos a fazer uma única coisa que Ele desejava que fizéssemos.
Vivíamos pela vida natural, e esta vida varia bastante. É escrava do nosso temperamento.
Quando estamos emocionalmente resolutos quanto a fazer a Sua vontade, avançamos
a plena velocidade, mas quando as nossas emoções estão dirigidas para outro
caminho, ficamos muito relutantes em nos movermos, mesmo quando o dever nos
chama. Não somos maleáveis nas mãos do Senhor. Assim, Ele precisa enfraquecer
em nós aquela força que prefere ou deixa de preferir, que gosta ou deixa de
gostar, até que façamos uma coisa porque Ele assim deseja, e não porque
gostamos dela. Podemos ter ou não ter gosto nessa coisa, mas a faremos da mesma
forma. Não se trata de encontrarmos certa satisfação em pregar ou em fazer este
ou aquele trabalho para Deus e, portanto, fazemo-lo. Não! fazemo-lo agora
porque é da vontade de Deus, e não porque nos dá ou deixa de nos dar alegria
consciente. A verdadeira alegria que conhecemos por fazer a Sua vontade, tem
raízes mais profundas do que as nossas emoções variáveis.
Deus quer nos levar ao ponto
de respondermos instantaneamente quando Ele expressa o mínimo desejo. É este o
espírito do Servo (SI 40.7,8), mas um espírito desta natureza não se manifesta
naturalmente em qualquer de nós. Manifesta-se apenas quando a nossa
alma, a sede das nossas energias naturais, da nossa vontade e das nossas afeições,
conhece o toque da Cruz. Todavia, o que Ele busca e quer ter em todos nós, é
semelhante espírito de servo. O caminho para chegar a isto talvez seja, para
alguns de nós, um processo longo e doloroso, ou talvez resulte de determinada
experiência; Deus tem os Seus caminhos e nós devemos respeitá-los.
Todo o verdadeiro servo de
Deus deve conhecer, em alguma ocasião, aquela capacidade de que já se despediu,
e que agora passou a ser incapacidade; jamais poderá voltar a ser exatamente o
mesmo. Aquela experiência de perder a nossa capacidade natural, humana, deve
ser de tal forma que doravante recearemos, realmente, fazer coisa alguma por
nós mesmos. Como Jacó, saberemos qual seria a intervenção soberana de Deus se
procurássemos fazer alguma coisa por conta própria, e qual seria a triste
experiência do nosso coração perante o Senhor, se nos movêssemos sob o impulso
da nossa alma. Já tivemos experiência da mão punitiva de um Deus que "nos
trata como filhos" (Hb 12.7). O próprio Espírito testifica com o nosso
espírito que somos filhos, e que a herança e a glória nos pertence se "com
ele padecemos" (Rm 8.16, 17); e a nossa resposta ao "Pai dos nossos
espíritos" é: "Abba, Pai".
Quando isto fica realmente
estabelecido em nós, chegamos a uma nova posição de que falamos como "o
terreno da ressurreição". Pode ser que a morte tenha operado em nós ao
ponto de resultar numa crise para a nossa vida natural, mas quando assim
acontece, verificamos depois que Deus nos liberta para a ressurreição. Descobrimos
que o que perdemos está voltando, embora não como antes. O princípio de vida
está em operação em nós agora, é algo que nos dá poder e nos fortalece, algo
que nos anima, dando-nos vida. Daqui em diante, o que perdemos será recuperado
— mas agora sob disciplina, sob domínio.
Permita-se-me esclarecer isto
muito bem. Se desejarmos ser pessoas espirituais, não precisaremos amputar as
mãos ou os pés; ainda podemos ter o nosso corpo. Da mesma maneira, podemos ter
a nossa alma, com o uso pleno das suas faculdades e, todavia, a alma já não é a
fonte de onde emana a nossa vida. Já não vivemos nela, não derivamos dela a
nossa força, os nossos recursos, já deixamos de viver por ela: apenas fazemos
uso dela. Quando o corpo é a nossa vida, vivemos como animais. Quando a alma se
torna a nossa vida, vivemos como rebeldes e fugitivos de Deus — dotados,
cultos, educados, sem dúvida, mas separados da vida de Deus. Mas, quando chegamos
a viver a nossa vida no Espírito e pelo Espírito, embora ainda usemos as faculdades
da nossa alma, exatamente como fazemos com as faculdades físicas, elas
agora são servos do Espírito e quando atingimos este ponto, Deus pode
realmente usar-nos.
A dificuldade, porém, para
muitos de nós, está naquela noite escura. O Senhor graciosamente me pôs de lado
uma vez na minha vida, durante vários meses, deixando-me, espiritualmente, em
densas trevas. Era quase como se Ele me tivesse abandonado — quase como se nada
estivesse acontecendo e eu tivesse realmente chegado ao fim de tudo. E depois,
por fases, Ele tornou a trazer as coisas. A tentação é sempre procurar ajudar
a Deus, reavendo as coisas por nós mesmos; mas, lembremo-nos, tem que haver uma
noite inteira passada no Santuário, uma noite de trevas, e esta experiência não
pode ser apressada; Ele sabe o que faz.
Gostaríamos de ter a morte e
a ressurreição reunidas com apenas uma hora de intervalo. Não podemos suportar
o pensamento de que Deus nos ponha de parte durante tanto tempo; não temos
paciência para esperar. E eu não posso dizer quanto tempo Ele levará, mas, em
princípio, penso que podemos dizer, com certeza, que haverá um período
definido, em que Ele nos conservará assim. Parecerá como se nada acontecesse;
tudo aquilo que consideramos de valor vai fugindo para longe do nosso alcance.
Perante nós fica como uma parede branca, sem porta alguma. Parece que todas as
outras pessoas estão sendo abençoadas e usadas, enquanto que nós próprios
fomos ultrapassados e achamo-nos derrotados. Permaneçamos quietos. Tudo está
em trevas, mas é apenas durante uma noite. Tem que ser uma noite total, mas é
só isso. Depois, verificaremos que tudo nos é restituído numa gloriosa
ressurreição, e coisa alguma pode medir a diferença entre o que foi antes e o
que agora é!
Estava um dia sentado, ao
almoço, com um jovem irmão a quem o Senhor falara sobre este mesmo assunto das
nossas energias naturais. Ele disse-me: "É coisa abençoada saber que o
Senhor veio ao nosso encontro e nos tocou desta forma fundamental, e que
recebemos esse toque que nos torna incapazes de tudo". Havia um prato de
biscoitos entre nós, na mesa, e peguei num e parti-o ao meio como se fosse
comê-lo, Depois, unindo os dois pedaços, outra vez, com todo o cuidado, disse:
"Tudo parece estar perfeitamente bem, mas nunca mais será o mesmo, não é?
Uma vez que se quebre a nossa espinha dorsal, submeter-nos-emos ao mais ligeiro
toque de Deus".
E é assim. O Senhor sabe o
que está fazendo com aqueles que Lhe pertencem, e não deixará de providenciar,
por meio da Sua Cruz, os suprimentos para todo e qualquer aspecto da nossa
necessidade, para que a glória do Filho possa manifestar-se nos filhos. Os
discípulos que já percorreram este caminho podem fazer eco sincero às palavras
de Paulo, quando este afirmava: "Deus, a quem sirvo em meu espírito, no evangelho
de seu Filho" (Rm 1.9). Aprenderam, como ele, o segredo de tal ministério:
"Nós que adoramos a Deus no Espírito, e nos gloriamos em Cristo Jesus, e
não confiamos na carne" (Fp3.3).
Poucos podem ter tido uma
vida mais ativa do que a de Paulo. Aos romanos declara que pregou o Evangelho
de Jerusalém até Ilírico (Rm 15.19) e que agora está pronto a ir a Roma (1.10)
e daí, se possível, à Espanha (15.24,28). Todavia, em todo este serviço, que
abrange todo o mundo do Mediterrâneo, o seu coração está posto num único
objetivo — a glorificação dAquele que tudo tornou possível. "Tenho, pois,
motivo de gloriar-me em Cristo Jesus nas coisas concernentes a Deus. Porque não
ousarei discorrer sobre coisa alguma senão daquelas que Cristo fez por meu
intermédio, para conduzir os gentios à obediência, por palavra e por
obras" (Rm 15. 17,18). Isto é serviço espiritual.
Que Deus possa fazer de cada
um de nós, tão verdadeiramente como era Paulo, "Um escravo de Jesus
Cristo".
Desperdício
"Estando ele
[Jesus] em Betânia, reclinado à mesa em casa de Simão, o leproso, veio uma
mulher que trazia um vaso de [alabastro] cheio de bálsamo de nardo puro, de
grande preço; e, quebrando o vaso, derramou-lhe sobre a cabeça o bálsamo."
(Mc 14.3).
A mulher quebrou um vaso
cheio de bálsamo, cujo valor era de 300 denários, e derramou-o todo sobre o
Senhor. Para o raciocínio humano, isto era realmente demais, dava-se ao Senhor
mais do que Lhe era devido. Foi por isso que Judas tomou a dianteira, com o
apoio dos outros discípulos, e deu voz à reclamação geral de que a ação de
Maria representava um grande desperdício.
"Indignaram-se alguns
entre si, e diziam: Para que este desperdício de bálsamo? Porque este perfume
poderia ser vendido por mais de trezentos denários, e dar-se aos pobres. E
murmuravam contra ela" (Mc 14.4,5). Estas palavras nos levam àquilo que,
segundo creio, está implícito na palavra "desperdício", e que o
Senhor quer que consideremos.
O que é desperdício?
Desperdício significa, entre outras coisas, dar mais do que é necessário. Se
bastam quatro cruzeiros e nós damos oitenta, isso é desperdício. Se bastam
duzentos e cinqüenta gramas, e nós damos um quilo, também é desperdício. Se
bastam três dias para acabar uma tarefa, e nós levamos cinco dias ou uma
semana para realizá-la, é mais um tipo de desperdício. Desperdício é dar algo
demasiado por alguma coisa de reduzida importância. Se alguém recebe mais do
que aquilo que se considera ser o valor em pauta, isso é desperdício.
Aqui, porém, estamos tratando
de algo que o Senhor queria que fosse proclamado juntamente com o Evangelho,
como se a pregação do Evangelho resultasse em algo muito semelhante àquilo que
Maria fez: que as pessoas se cheguem a Ele e se desperdicem por amor dEle. É
este o resultado que Ele procura alcançar.
Podemos considerar de dois
pontos de vista este assunto de nos desperdiçarmos por amor do Senhor: o de
Judas (João 12.4-6) e o dos outros discípulos (Mt 26.8, 9); para este
propósito, examinaremos as duas narrativas em paralelo.
Todos os doze pensaram que
era um desperdício. Para Judas, evidentemente, que nunca chamou a Jesus
"Senhor", tudo quanto fosse derramado sobre Ele representaria um
desperdício. Não somente o ungüento, como também a própria água teria sido um
desperdício. Neste aspecto, Judas representa o mundo. Na estimativa do mundo,
o serviço do Senhor e a entrega de nós mesmos a Ele, para o Seu serviço, é um
desperdício completo. Ele nunca foi amado, nunca teve lugar nos corações do
mundo, de modo que qualquer coisa dada a Ele é um desperdício. Muitos dizem:
"Fulano poderia ser de grande valor no mundo, se não fosse crente".
Se um homem tem algum talento natural, ou qualquer outra vantagem aos olhos do
mundo, consideram ser uma vergonha para ele, estar servindo ao Senhor. Pensam
que tais pessoas são realmente demasiadamente boas para o Senhor. "Que
desperdício de uma vida tão útil!" - dizem.
Vou apresentar um exemplo
pessoal. Em 1929 regressava de Xangai à cidade onde residia, Foochovv. Certo
dia, caminhava ao longo da rua com uma bengala, muito fraco e com a minha
saúde abalada, e encontrei-me com um dos velhos professores da escola. Ele me
levou a um salão de chá onde nos sentamos. Olhou para mim, da cabeça aos pés e
dos pés à cabeça, e depois disse: "Olhe, enquanto você estava no colégio,
tínhamos as melhores esperanças para você, pensando que você realizaria algo
de grandioso. Será realmente isto, o que você veio a ser agora?" Olhando
para mim, com os seus olhos penetrantes, fez esta pergunta direta. Devo
confessar que, ao ouvi-lo, o meu primeiro desejo foi o de me desfazer em
lágrimas. A minha carreira, a minha saúde, tudo se fora, tudo se perdera, e
aqui estava o meu velho professor, que me ensinava direito na escola,
perguntando: "Ainda se encontra nestas condições, sem êxito, sem progresso,
sem qualquer coisa que possa mostrar? "
Mas naquele mesmo momento — e
tenho que reconhecer que foi a primeira vez em toda a minha vida que isto
aconteceu — conheci realmente o que significa ter o "Espírito da
glória" repousando sobre mim. Só pensar que eu pudesse derramar a minha
vida por amor do meu Senhor inundou a minha alma de glória.
Nada menos do que o próprio
Espírito da glória pairava então sobre mim. Pude olhar para cima e, sem reservas,
dizer: "Senhor, eu louvo o Teu nome! Isto é a melhor coisa possível; é a
carreira acertada que eu escolhi!" Ao meu professor, parecia um
desperdício total eu dedicar a minha vida ao serviço do Senhor; mas é justamente
isto que o Evangelho faz — nos leva a avaliar de maneira certa o valor do nosso
Senhor.
Judas sentiu que era um
desperdício. "Poderíamos usar melhor o dinheiro, aplicando-o de outra
forma. Há tanta gente pobre. Por que não dar o dinheiro a alguma caridade,
fazer algum trabalho social para o alívio dos necessitados, auxiliar os pobres
de alguma maneira prática? Por que derramar todo este valor aos pés de Jesus?
" (Ver João 12.4-6). É sempre desta forma que o mundo pensa. "Você
não pode fazer alguma coisa melhor com a sua vida do que isso? Dar-se assim
inteiramente ao Senhor é ir longe demais!"
Se o Senhor é digno, como
pode isso ser um desperdício? Ele é digno de ser servido desta maneira. Ele é
digno de que eu seja Seu prisioneiro. Ele é digno de que eu viva somente para
Ele. O que o mundo diz a respeito não importa, porque Ele é digno. O
Senhor disse: "Deixai-a!" Não nos perturbemos, portanto. Seja o que
for que o mundo disser, nós poderemos nos firmar nesta base, porque o Senhor
disse: "É uma boa obra. Toda a verdadeira boa obra não é a que se faz aos
pobres; toda a boa obra é a que é feita a Mim". Uma vez que os nossos
olhos tenham sido abertos para o real valor do nosso Senhor Jesus, coisa
alguma será boa demais para Ele.
Não quero, porém, me demorar
muito com Judas. Vamos ver qual foi a atitude dos outros discípulos, porque a
reação deles nos afeta muito mais do que a dele. Não nos importamos grandemente
com o que o mundo diz; podemos enfrentá-lo facilmente, mas importamo-nos muito
com o que dizem outros cristãos, que deveriam compreender o gesto de Maria.
Verificamos, contudo, que os outros discípulos disseram a mesma coisa que
Judas, e além disto, ficaram perturbados e muito indignados com o acontecido.
"Vendo isto, indignaram-se os discípulos e disseram: Para que este
desperdício? Pois este perfume podia ser vendido por muito dinheiro, e dar-se
aos pobres" (Mt 26.8,9).
Evidentemente, sabemos que
atitudes mentais desta natureza são muito comuns entre cristãos que dizem:
"Obtenhamos tudo quanto pudermos com o menor esforço possível". Não é
somente com estas atitudes que se trata aqui. O assunto vai mais profundo, como
quando alguém nos diz que estamos desperdiçando a nossa vida por ficarmos
quietos, sem fazer muita coisa. Dizem: "Estas pessoas devem lançar-se a
este ou àquele tipo de trabalho. Podiam ser usados para auxiliar este ou aquele
grupo. Por que não são mais ativas? ". E, ao dizê-lo, toda a sua idéia de utilidade
é o que se evidencia. Tudo deve ser plenamente utilizado da forma que eles
próprios entendem.
Pessoas desta natureza se
sentem muito preocupadas, a este respeito, com alguns servos amados do Senhor
que, aparentemente, não estão fazendo o suficiente. Podiam fazer muito mais,
pensam, se conseguissem entrar nalgum lugar onde ganhariam maior aceitação e
proeminência em certos círculos. Podiam então ser usados de forma muitíssimo
maior. A irmã de que falei foi muito usada para me ajudar neste ponto; foi
usada pelo Senhor, de forma muito real, durante aqueles anos em que a conheci,
embora eu não soubesse reconhecer quão grande obreira do Senhor ela era, a
preocupação do meu coração era esta: "Ela não está sendo usada!"
Dizia constantemente a mim mesmo: "Por que é que ela não sai para fazer
reuniões, não vai a parte alguma, fazer alguma coisa? E um desperdício de
tempo ela viver nesta pequena aldeia onde nada acontece". Às vezes, quando
ia visitá-la, quase gritava com ela. Dizia-lhe eu: "Ninguém conhece o Senhor
como a irmã. A irmã conhece o Livro de uma maneira absolutamente viva. Não vê
as necessidades à sua volta? Por que não faz qualquer coisa? É um desperdício
de tempo, um desperdício de dinheiro, um desperdício de tudo, ficar aqui e não
fazer nada!"
Não, irmãos, o fazer não é o
principal para o Senhor. É certo que Ele deseja que você e eu sejamos usados.
Deus me livre de pregar a inatividade ou de justificar uma atitude complacente
perante as necessidades do mundo. Como diz o próprio Jesus, "o Evangelho
será pregado por todo o mundo". A questão, porém, é de ênfase. Hoje,
reconsiderando o passado, entendo que o Senhor usou grandemente aquela
querida irmã para falar a um certo número de nós que, como jovens, estávamos
naquela altura na Sua escola de aprendizagem para este trabalho do Evangelho.
Não posso agradecer suficientemente a Deus por ela.
Qual é, pois o segredo? E
que, ao aprovar a ação de Maria em Betânia, o Senhor Jesus estava estabelecendo
um princípio como base de todo o serviço: que derramemos tudo o que temos, nos
derramemos a nós mesmos, para Ele; e se isso for tudo o que Ele nos
conceder que façamos, é suficiente. O mais importante não é se os "pobres"
são ou não ajudados. O mais importante é: O Senhor ficou satisfeito?
Há muitas reuniões em que
poderíamos falar, muitas convenções em que poderíamos ministrar, muitas campanhas
evangelísticas em que poderíamos tomar parte. Não é que não sejamos capazes de
o fazer. Poderíamos trabalhar e ser usados ao máximo; mas o Senhor não sente
tanta preocupação acerca da nossa incessante ocupação no Seu trabalho. Não é
este o Seu objetivo principal. Não se mede o serviço do Senhor por resultados
tangíveis. Não, meus amigos, a primeira preocupação do Senhor é com a nossa
posição aos Seus pés e com a nossa atitude de ungir a Sua cabeça. Seja o que
for que tivermos como "vaso de alabastro": a coisa mais preciosa, a
coisa mais querida para nós no mundo — sim, digo, tudo quanto pudermos oferecer
a partir de uma vida vivificada pela própria Cruz - damos isso tudo ao Senhor.
Para alguns, mesmo para aqueles que deveriam compreendê-lo, parece um
desperdício; mas isso é o que Ele busca acima de tudo. Muitas vezes, o que Lhe damos
expressar-se-á em serviço incansável, mas Ele Se reserva o direito de suspender
o serviço por um tempo, a fim de nos revelar se é o serviço, ou Ele mesmo, que
nos empolga.
Ministrando para o Seu beneplácito
"Onde for pregado em todo
o mundo o evangelho, será também contado o que ela fez, para memória sua"
(Mc 14.9).
Por que disse o Senhor isto? Porque
é este o resultado que o Evangelho procura produzir. O Evangelho serve justamente
para isto. O Evangelho não é apenas para satisfazer os pecadores. Graças a
Deus que os pecadores serão satisfeitos! Podemos, no entanto, chamar esta
satisfação de bendito sub-produto do Evangelho, e não o seu alvo primário. O
Evangelho é pregado, em primeiro lugar, para que o Senhor possa ficar
satisfeito.
Parece que ressaltamos
demasiadamente o bem dos pecadores, e que não temos apreciado suficientemente
o que o Senhor tem em vista como o Seu objetivo. Temos pensado no que
sucederia ao pecador se não houvesse Evangelho, mas esta não é a consideração
principal. Sim. graças a Deus! O pecador tem a sua parte. Deus satisfaz, a sua
necessidade c derrama sobre ele chuvas de bênçãos; mas. isto não é o mais
importante. O mais importante é que tudo deve ser entendido do ponto de vista
da satisfação do Filho de Deus. E somente quando Ele fica satisfeito que nós
também ficaremos satisfeitos c que o pecador ficará satisfeito. Jamais
encontrei uma alma que se tenha proposto satisfazer o Senhor e que não tenha,
ela própria, encontrado satisfação. E impossível. A nossa satisfação resulta
infalivelmente de satisfazermos a Ele primeiro.
Mas temos que recordar-nos de
que Ele nunca ficará satisfeito sem que nos desperdicemos (como diz o mundo)
por Ele. Você já deu demasiado ao Senhor? Posse dizer-lhe uma coisa? Uma lição
que alguns de nós temos aprendido é esta: que no serviço divino o princípio de
nos gastarmos é o princípio do poder. O princípio que determina a utilidade é
exatamente o princípio de nos espalharmos. A verdadeira utilidade nas mãos de
Deus mede-se em termos de "desperdício". Quanto mais pensarmos que
podemos fazer, e por mais que empreguemos os nossos dons até aos
limites máximos (e alguns ultrapassam mesmo os limites) a fim de fazê-lo, tanto
mais descobriremos que estamos aplicando o princípio do mundo e não o do Senhor.
Os caminhos de Deus, a nosso respeito, são todos designados para estabelecer
em nós este outro principio: que o nosso trabalho para Ele resulta de
nós ministrarmos a Ele. Não quer dizer que vamos ficar sem fazer coisa
alguma; todavia, a primeira coisa para nós deve ser o Senhor mesmo e não o Seu
trabalho.
Devemos, porém, descer a
questões de ordem muito prática. Você poderá dizer: "Abandonei uma
posição; abandonei um ministério; renunciei a certas possibilidades atraentes
de um futuro brilhante, procurando assim andar mais perto do Senhor. Agora, na
minha tentativa de servir ao Senhor, parece que às vezes o Senhor não me ouve,
e que às vezes Ele não dá à minha obra os resultados que procurei. Assim, vou
me comparando a certo amigo que tinha futuro igualmente brilhante, que não
abandonou, e que agora trabalha numa grande empresa, exercendo também um
ministério de meio período. Nesta obra, ele vê almas sendo salvas, e a bênção
de Deus sobre seu ministério, tendo sucesso tanto material como espiritual. Parece
mais crente de que eu, tão feliz, tão satisfeito! Qual vantagem espiritual
tiro da minha dedicação? Ele fica livre das dificuldades e complicações que
enfrento, e ainda é considerado espiritualmente próspero. Será que eu desperdicei
a minha vida, que realmente dei demais? "
Colocando o problema assim,
você sente que se seguisse os passos daquele outro irmão — digamos, se se
consagrasse suficientemente para a bênção, mas não o bastante para a
tribulação, suficientemente para o Senhor usá-lo, mas não o bastante para que
Ele o deixasse inativo — tudo estaria perfeitamente bem. Mas estaria, mesmo?
Sabe perfeitamente bem que não.
Olhe para o seu Senhor e
pergunte-se de novo o que é que Ele considera de mais valor. O principio
de nos gastarmos é o principio que Ele quer que nos governe. "Ela
fez isto por Mim". O coração do Filho de Deus experimenta real
satisfação somente quando realmente nos entregamos a Ele de tal maneira total
que, segundo uns diriam, estamos sendo desperdiçados — dando muito e recebendo
pouco — só procurando agradar a Deus.
Oh, meus amigos, o que
buscamos nós? Estamos procurando a utilidade que se mede em efeitos visíveis,
como aqueles discípulos faziam? Desejavam tirar o máximo proveito de cada
centavo daqueles 300 denários. Toda a questão consistia em
"utilidade" óbvia, em termos que podiam medir-se e ser registrados. O
Senhor espera ouvir-nos dizer: "Senhor, eu não me importo com isso. Se apenas
puder agradar-Te, isso me basta".
Ungindo-O antecipadamente
"Deixai-a; por que a molestais?
Ela praticou boa ação para comigo. Porque os pobres sempre os tendes convosco
e, quando quiserdes, podeis fazer-lhes bem, mas a mim nem sempre me tendes. Ela
fez o que pôde: antecipou-se a ungir-me para a sepultura" (Mc 14.6-8).
Nestes versículos, o Senhor
Jesus introduz o fator tempo, com a palavra "antecipou-se", e isto é
algo que podemos aplicar hoje de maneira diferente, porque é tão importante
para nós corno o foi então para ela. Todos sabemos que, na idade vindoura,
seremos chamados a um trabalho maior — e não à inatividade. "Muito bem,
servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei: entra no
gozo do teu senhor" (Mt 25.21;comparar Mt 24.47 e Lc 19.17). Sim, haverá
um trabalho maior; porque o trabalho da casa de Deus continuará, assim como
continuou, na narrativa, o cuidado pelos pobres. Os pobres sempre estariam com
eles, mas eles não poderiam tê-Lo sempre a Ele. Houve alguma coisa,
representada por este derramamento de ungüento, que Maria teve que fazer antecipadamente,
ou ela não teria oportunidade de o fazer mais tarde. Creio que, naquele
dia, amá-Lo-emos como nunca o fizemos até agora, e, contudo, que haverá maior
bênção para aqueles que já derramaram o seu tudo sobre o Senhor hoje. Quando O
virmos face a face, espero que todos quebrantaremos e derramaremos tudo sobre
Ele. Mas hoje — o que estamos fazendo hoje?
Alguns dias depois de Maria
ter quebrado o vaso de alabastro e ter derramado o ungüento sobre a cabeça de
Jesus, houve algumas mulheres que foram, de manhã cedo, para ungir o Corpo do
Senhor. Mas fizeram-no elas? Conseguiram realizar o seu propósito naquele
primeiro dia da semana? Não, houve apenas uma alma que conseguiu ungir o
Senhor, e essa foi Maria, que O ungiu antecipadamente. As outras nunca o
fizeram, porque Ele ressuscitara. Ora, eu sugiro que a questão do tempo pode
ser, de modo semelhante, também importante para nós, e que a questão toda para
nós é: o que estou fazendo ao Senhor hoje?
Os nossos olhos têm sido
abertos hoje para perceber a preciosidade dAquele a Quem servimos? Já reconhecemos
que somente o que nos é mais querido, caro e precioso é digno de ser oferecido
a Ele? Já compreendemos que o trabalho em favor dos pobres, o trabalho em
benefício do mundo, o trabalho pelas almas dos homens e pelo bem eterno dos
pecadores — coisas estas tão necessárias e valiosas — apenas são boas quando
colocadas em seus respectivos lugares? Em si mesmas, como objetos separados,
são como nada, comparadas com o que é feito ao Senhor.
Nossos olhos devem ser abertos
pelo Senhor para vermos o Seu valor. Se houver no mundo algum tesouro precioso
de arte e eu pagar o preço mais elevado pedido por ele, quer seja mil, dez mil,
ou mesmo um milhão de cruzeiros, ousaria alguém dizer que foi um desperdício?
A idéia de desperdício apenas entra em nossa cristandade quando sub-estimamos o
valor do nosso Senhor. A questão é esta: Quanto vale Ele para nós, hoje? Se
Lhe damos pouco valor, então, evidentemente, qualquer coisa que Lhe dermos, por
pequena que seja, parecer-nos-á um grande desperdício. Mas quando Ele é,
realmente, preciosa jóia das nossas almas, nada será demasiado bom, nada
demasiado caro para Ele; tudo o que temos, os nossos tesouros, de maior preço e
de maior estima, derramaremos sobre Ele e não nos sentiremos envergonhados por
tê-lo feito.
A respeito de Maria, o Senhor
disse: "Ela fez o que pode". O que significa isto? Significa que ela
dera tudo. Não guardara coisa alguma para si, em reserva para o futuro.
Derramou sobre Ele tudo o que tinha, e, todavia, na manhã da ressurreição, não
tinha razão para lamentar a sua extravagância. E o Senhor não Se satisfará com
qualquer coisa inferior da nossa parte, até que nós também tenhamos feito o
que podemos. Com isto, lembremo-nos, não me refiro ao gasto dos nossos esforços
e energias, ao procurar fazer algo para Ele, porque este não é o caso. O que o
Senhor Jesus espera de nós é uma vida depositada aos Seus pés, e isso em vista
da Sua morte e sepultamento e de um dia futuro. O Seu sepultamento estava já em
vista, naquele dia, no lar de Betânia. Hoje, é a Sua coroação que está em
perspectiva, quando Ele será aclamado, em glória, como o Ungido, o Cristo de
Deus. Sim, então derramaremos tudo sobre Ele! Mas é coisa preciosa — muito
mais preciosa para Ele — que O unjamos agora, não com qualquer óleo material,
mas com alguma coisa que representa valor, algo emanado dos nossos corações.
Aquilo que é meramente
externo e superficial não tem lugar aqui. Tudo isso foi solucionado pela Cruz,
e nós já concordamos com o juízo de Deus quanto a isto, aprendendo a conhecer
na experiência a separação efetuada. O que Deus pede da nossa parte agora é
representado pelo vaso de alabastro, algo extraído das profundezas, algo
torneado, gravado e trabalhado, algo que, devido a falar-nos tão realmente do
Senhor, estimamos como Maria estimava aquele frasco — e nós não queríamos, não
ousaríamos quebrá-lo. Sai agora do nosso coração, do mais profundo do nosso
ser; e chegamo-nos ao Senhor com o nosso "vaso" e quebramo-lo e
derramamo-lo e dizemos: "Senhor, aqui está, é tudo Teu, porque Tu és
digno!" — e o Senhor recebe o que desejava da nossa parte. Possa Ele
receber semelhante unção proveniente de nós, hoje.
Fragrância
"E encheu-se toda a casa
com o perfume do bálsamo" (João 12.3). Em virtude de se ter quebrado o
vaso e da unção do Senhor Jesus, a casa foi penetrada da mais doce fragrância.
Todos podiam cheirá-la e ninguém podia ficar inconsciente do cheiro. Qual é o
significado disto?
Sempre que encontramos alguém
que realmente sofreu — alguém que passou por experiências com o Senhor, que o
trouxeram ao limite de si mesmo e que, em vez de procurar libertar-se, a fim
de ser "usado", se prontificou a ficar aprisionado por Ele, e
aprendeu assim a achar satisfação no Senhor e em nada mais — ficamos então logo
cônscios de alguma coisa. Imediatamente os nossos sentidos espirituais percebem
um doce sabor de Cristo. Algo foi esmagado, algo foi quebrado naquela vida, e
por isso podemos cheirar o seu perfume. O perfume que encheu a casa naquele
dia, em Betânia, ainda enche a Igreja hoje. A fragrância de Maria nunca passa.
Apenas foi necessário dar uma pequena pancada para quebrar o vaso para o Senhor,
mas aquele ato de quebrar o vaso e a fragrância daquela unção ainda
permanecem.
Estamos falando do que nós
somos; não do que fazemos ou do que pregamos. Talvez já há muito, pedimos ao
Senhor que nos usasse para comunicar aos outros o recado dEle. Esta oração não
é necessariamente um pedido para receber o dom de pregar ou de ensinar.
Expressa antes o desejo de podermos, nas nossas relações com os outros,
transmitir Deus,a presença de Deus, a percepção de Deus. Não podemos produzir
tais impressões de Deus nos outros sem que tudo em nós tenha sido quebrado,
mesmo as nossas preciosíssimas possessões, aos pés do Senhor Jesus.
Uma vez alcançada esta
condição, Deus começará a usar-nos para criar nos outros uma sensação de fome
espiritual, mesmo sem haver em nossas vidas demonstrações externas muito
visíveis de estarmos empenhados em tão preciosa obra. As pessoas sentirão perto
de nós o perfume de Cristo. O menor santo no Corpo senti-lo-á. Perceberá que
está com alguém que tem andado com o Senhor, que tem sofrido, que não se tem
movido livremente, independentemente, mas que já soube o que significa
entregar todas as coisas a Ele. Este gênero de vida cria impressões, e tais
impressões produzem fome, e a fome leva os homens a continuar a sua busca até
que são trazidos, por revelação divina, à plenitude de vida em Cristo.
Deus não nos põe aqui,
primeiramente, para pregar, ou para fazer um trabalho para Ele. A primeira
razão por que Ele nos põe aqui é para criar nos outros fome por Si mesmo. É
isso, acima de tudo, que prepara o terreno para a pregação.
Se pusermos um bolo delicioso
perante dois homens que acabaram
de ter uma lauta refeição, qual será a sua reação? Falarão acerca do bolo,
admirarão o seu aspecto, discutirão a receita, falarão sobre o preço — farão
tudo, afinal, menos comê-lo! Mas, se estiverem verdadeiramente com fome, não
passará muito tempo sem que o bolo tenha desaparecido. E o mesmo acontece com
as coisas do Espírito. Não iniciará qualquer trabalho verdadeiro numa vida sem
que, primeiramente, seja criado um sentimento de necessidade. Mas como pode
isto ser feito? Não podemos empregar força para injetar apetite espiritual nos
outros; não podemos obrigar as pessoas a terem fome. A fome tem que ser criada
e pode ser criada nos outros apenas por aqueles que levam consigo impressões de
Deus.
Sempre gosto de pensar nas
palavras daquela "mulher rica" de Suném. Falando do profeta, que
tinha observado mas a quem não conhecia bem, ela disse: "Vejo que este que
passa sempre por nós é santo homem de Deus" (II Rs 4.9). Não foi o que
Eliseu disse ou fez que lhe transmitiu tal impressão, mas o que ele era. Ela podia
perceber alguma coisa, por ele passar simplesmente por ali. Ela podia ver. O
que sentem as pessoas à nossa volta a nosso respeito? Podemos deixar muitos
tipos diferentes de impressão: talvez deixemos a impressão de sermos hábeis, de
sermos prendados, de sermos isto ou aquilo; a impressão deixada por Eliseu,
porém, foi mesmo uma impressão de Deus.
Esta questão da nossa
influência sobre os outros depende de permitirmos que a Cruz faça em nós a sua
obra total, até que possamos satisfazer ao coração de Deus. Requer que eu
busque o Seu beneplácito, que procure satisfazer somente a Ele, e que eu não me
importe de quanto isso me custe. A irmã de quem tenho falado, encontrou-se um
dia em situação muito penosa para ela, que lhe custava tudo. Eu estava com ela naquela
ocasião, e juntos, ajoelhamos e oramos com os olhos marejados de lágrimas.
Olhando para cima, ela disse: "Senhor, estou pronta a quebrar o meu coração,
a fim de poder dar satisfação ao Teu coração!" Falar deste quebrantamento
de coração poderia parecer a muitos de nós um sentimento meramente romântico
mas, na situação especial em que ela se encontrava, significava exatamente
isso.
Tem que haver alguma coisa —
a prontidão em render-se, um quebrantamento e um derramamento de tudo para Ele
— que liberte aquela fragrância de Cristo e produza noutras vidas a consciência
de necessidade, atraindo-as e impelindo-as a prosseguir em conhecer o Senhor. É
isto que eu sinto ser o coração de tudo. O Evangelho tem como objetivo produzir
em nós, pecadores, uma condição que satisfaça o coração do nosso Deus, e, a fim
de que Ele possa ter essa satisfação, nós vimos a Ele com tudo o que temos,
tudo o que somos — sim, mesmo as coisas mais queridas na nossa experiência
espiritual — e apresentamo-nos a Ele nestes termos: "Senhor, estou pronto
a abdicar de tudo isto por amor de Ti: não apenas pelo Teu trabalho, nem pelos
Teus filhos, nem por qualquer outra coisa, mas por Ti mesmo!"
Que maravilha, ser gasto! É
coisa abençoada, ser gasto para o Senhor! Tantos que têm sido proeminentes no
mundo cristão nada conhecem disto. Muitos de nós temos sido usados plenamente —
temos sido usados, diria, demasiadamente — mas não sabemos o que significa
sermos desperdiçados para Deus. Gostamos de estar sempre ativos: o Senhor,
algumas vezes, prefere ter-nos na prisão. Penso em termos das viagens
apostólicas. Deus ousa por em cadeias os Seus maiores embaixadores.
"Graças, porém,
a Deus que em Cristo sempre nos conduz em triunfo, e, por meio de nós,
manifesta em todo lugar a fragrância do seu conhecimento" (II Co 2.14).
"E encheu-se toda
a casa com o perfume do bálsamo" (João 12.3).
O Senhor nos conceda graça
para que possamos aprender a agradar-Lhe. Quando, como Paulo, fizermos disto o
nosso alvo supremo (II Co 5.9), o Evangelho terá realizado o seu propósito.
Os editores esperam que a
leitura deste livro tenha sido de real valor na vida do leitor, e receberão de bom grado quaisquer comentários a respeito.
A Vida Cristã Normal
"O evangelho tem como
seu objetivo primordial produzir em nós,
pecadores, uma condição que satisfaça ao coração
de Deus".
Watchman Nee, que talvez seja
o mais bem conhecido líder cristão que a China já produziu,
compartilhou com seus seguidores as verdades contidas em A VIDA CRISTÃ NORMAL, sem perceber que, em parte, profetizavam elas
sobre ele próprio.
Nesse livro, declara Nee:
"Gostamos de estar sempre em atividade; mas algumas vezes o Senhor prefere
que fiquemos numa prisão. Pensamos em termos
de uma jornada apostólica (grande
utilidade), porém Deus ousa lançar em cadeias a seus maiores embaixadores".
Este livro contém a útil orientação oferecida por um daqueles grandes embaixadores.
Watchman Nee foi feito prisioneiro em 1952. Vinte anos de encarceramento,
seguidos por sua morte, deram maior significado às
suas palavras no livro.
"Senhor, estou pronto a
deixar tudo isso por amor de Ti; não
apenas por causa de teu trabalho, nem por teus filhos, ou por qualquer outra coisa,
mas por amor de Ti."
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